domingo, 9 de agosto de 2015

Antes


Rezo por um leito, rezo por dedos pedindo silêncio pra que não se acorde as estrelas e não se apresse o amanhecer. Pra que o sol demore, venha lento como quem não quer vir, demore tanto que o amanhã vire semana que vem e prolongue o finito tornando-o semi-eterno. Se a luz traz a realidade, vamos nos esconder aqui no escuro onde ninguém nos enxerga e deixar que assim seja – deixe, que a escuridão se encarrega de fazer todo mundo esquecer da gente só um pouquinho, só até semana que vem, só até a última gota de suor. Até que então no silêncio e na noite de nós o fim torne-se um eterno começo.
Vamos cobrir as paredes e o teto fazendo com que, para nós, o sol esteja sempre se pondo e nunca nascendo, anunciando nunca um novo desfecho. Vamos parar de rezar, torcer ou pedir e fazer da vida apenas carnaval, um pra-sempre madrugada. Taparei os lábios que se despedem, largarei as roupas que não se despem, fecharei as malas que não se arrumam pra que estejamos sempre indo embora hoje, mas nunca indo embora do sempre.

domingo, 5 de julho de 2015

Borboletário


havia um nó dentro dela:
em pé, formava um oito
deitada, era infinito

o nó prendia-se todo firme
era como o de um marinheiro,
invejado por escoteiros

certo dia, algo fez seu nó debater-se
como asas
seu estômago pois: fez-se borboletário

foi assim que seu nó virou um nós
e percebeu então que ser plural
era o melhor nó que ela poderia ter

terça-feira, 26 de maio de 2015

cópula


andava como que carregada por estrelas
escutava como quem sempre ouvisse música
falava como quem sempre canta
deitava-se como quem já descansa

e pintava-se como se já tivesse cor
chovia como se fosse nuvem
e lia como se já não soubesse
acreditava como quem tivesse fé

e rezava como quem já possuísse
para que a vida não a resumisse
a uma nota de rodapé

para que o tempo
fizesse dela

romance

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Cuidado Ao Abraçar Poetas


Era assim: se alguém queimava o almoço na cozinha, era o primeiro a pegar a parte preta: não cria merecer o melhor.  Levantava todas as vezes para dar lugar também aos mais novos, pois nem sentar merecia. Como um porto conveniente para barcos solitários, nunca fechado, os braços sempre abertos, quase escancarados. Levaram-lhe, ao longo da vida, duas ou dez notas de cem entre abraços – distraído, um romântico não enxerga nada além do momento. Nú, único: o momento. Um poeta, quando abraçado, ganha dez graus em miopia de ilusão.
Foi assim: doou tanto sangue que acabou por ficar sem. Certa vez, deu pra se alimentar do benmaldito amor. Foi maldito. Foi o braço direito mais direito do bendito e acabou por perder o dito cujo (o braço). Foram-se os dedos, ficaram os anéis. Transformou estes em brincos, que logo lhe foram roubados também, entre um beijo e um estalido. Mais um agosto e não lhe sobrava nem o corpo. Mais um setembro e foi-se a alma.
Doou-se tanto, sobrou-lhe nada.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

verso sem verso


eu - que não versejo - te verso este verso no verso
(do cabelo)
te escrevo como a flor que renasce no jardim
(do tempo)
pra dizer que gosto de tuas retas juntas às minhas tortas
(de morango)
num verso de crença espero que creias com fé
(na descrença)
nos meus olhos de tantos gracejos sem graça
(de graça)
que vendi só pra ti no teu brechó mais barato
(de luxo)
pra só um comprador poder me comprar de você
(tu mesmo)

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Epopeia




ia te dizer, te escrevi
parece-me que escrevo, mas dizem por aí que vivo
um poema de Leminski pichado na parte de dentro do meu jeans
tatuagens cerebrais das coisas que não fiz


ia dizer-te não, disse pra mim
sou um escritor sem café ou cigarro
paisagem mais cega destes campos amarelados
um hino surdo dos românicos românticos
dos esquecidos guardei tudo como se fosse meu

ia cantar, enrouqueci
é tanto silêncio pra tanto a dizer
que sufoquei o tanto que enlouqueci

ia xingar, quebrei meus dedos
li poesia demais pra odiar-lhe
pra refrear, quisera ter lido menos
quisera ter vivido mais

ia revidar, abandonei
como um lutador sem adversário
perdi-me no caminho entre três poemas e dois romances
dois versos mataram-me
outra rima e enterraram-me
epopeia esta que tu não choraste 

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Bio-logia


CANIBALISMO


A Primeira Mulher a olhou como quem olha um belo prato de lasanha com fritas. As luzes do clube a observavam e piscavam como um míope sem óculos.  A Segunda Mulher lambeu os lábios vorazes e arrebitou os quadris. Ela cruzou a Primeira Mulher em direção ao banheiro e esta a seguiu. Engoliram-se entre as portas do lavatório.

COMPETIÇÃO

Os Homens a olharam com furor. Deveria ser a vigésima da noite de um. O amigo estava pela décima quinta. Ambos posicionaram os dedos no cós da calça jeans indicando o órgão coberto. A Mulher observou seus cintos. Couro sim, couro sim. Sapatos limpos sim, sapatos limpos sim. Cabelo penteado sim, cabelo penteado não. Vodka, uísque. A Mulher seguiu à esquerda. Beijaram-se durante três martinis e cinco mixagens ruins.

COMENSALISMO

A Mulher chorava. O Primeiro Homem a havia deixado há apenas trinta e cinco minutos sem fazer-se entender. Lenços cobriam a cama solitária. O telefone toca, é o Segundo Homem. Ela atende e sorri, limpando as últimas lágrimas do dia.

PROTOCOOPERAÇÃO

Decidiram em um domingo modorrento: era o fim. O ciúme os matara como amantes, mas a amizade era sólida, única. O carinho, imenso. Abraçaram-se. Eram eternos.

MUTUALISMO

O Homem decidiu em um domingo caótico: era o fim. A sensação de estar preso, para ele, era fatal. Guardou suas coisas, sumindo com as malas e os papéis de carta. Ele respirou, aliviado. A Mulher respirava por aparelhos.

PREDATISMO

O Homem olhou-a entrar no beco em busca de cigarros. Observou seus quadris curvilíneos, seu rosto jovem e macio. A cor dos lábios d’A Garota era como cocaína para o seu cérebro. Seu coração palpitava e seu órgão também. Seguiu-a, admirou-a. Atacou-a sob a luz do bar abandonado.

PARASITISMO

Era uma mulher simplista. Ele, um sugador. Movia céus se pudesse acalmá-lo, enquanto perambulava frenético pelas ruas da cidade. Ela limpava-lhe os pés após as caminhadas descalço, enquanto ele dormia bêbado de vinho. O Homem consumia. Ela doava. Errôneos, amavam-se.