quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Tudo o Que Tenho a Dizer


Faço preces para que você se lembre de mim. Eu peço por favor por favor por favor para que você não desapareça porque de repente me bateu esse pavor insano de que você sumisse ou virasse poeira no ar de janeiro próximo. Um pânico repentino de que a sua vida acabasse e eu continuasse aqui, sentada ao lado do seu assento vazio, tomada de lembranças do que poderia ter acontecido.
Eu rezo para religião nenhuma, querendo que você me entenda e que por favor por favor por favor continue lembrando que eu existo porque você sabe fazer todas as coisas que eu não consigo e faz parecer normal quando não vejo problemas aonde tem.
Vê se não me erra, se me liga, não esqueça que me lembro de tudo, que não faço nada direito sem essa sua opinião torta, me responde os emails ou essa coisa toda de comunicação contemporânea. Eu me movo aos trancos, sem tripé, sem jeito, nem nexo ou graça - eu nunca aprendi a caminhar quando se tem os pés meio grandes.
Não sou nada daquilo (aquela simpatia toda, aquela doçura toda) e você sabe, não sou nada daquilo e você aceita, não sou nada daquilo e por favor por favor por favor continue sabendo disso e zombando das minhas burradas patéticas.
Os meus espinhos não estão gastos, os meus olhos já estão vermelhos e eu não tenho mais prazer ou urgência em ser quem eu costumava fingir que era. Preciso te contar (preciso mesmo te contar) que eu não fiz progresso algum com essa mudança, que eu não melhoro, eu não evoluo, eu não ando. Preciso mesmo te falar que não tenho nada a esconder, nem as coisas dos corredores, nem as coisas das chuvas, nem as das salas, nem as dos cinemas, nem as coisas de nenhum outro lugar que nunca te contei, mas de alguma forma espantosamente cósmica você sabe e sempre me manda um sopro de alívio nos exatos períodos malditos. Por favor por favor por favor continue adivinhando os meus períodos malditos, as minhas fases sombrias, os meus dias condenados, continue os salvando, continue comigo. Continue em infinito, em looping, pro universo todo, sem fim – não crie um fim, não não não. Não termine nunca de existir. Não se canse daqui (o seu ‘aqui’ é belo e intenso demais). Os términos estão todos nas minhas costas, deixe-os comigo, são todos meus: guardados junto com as coisas que eu escrevo por não saber falar e os meus repentinos pontos finais.

PS.:“eu vou ficar te esperando / bebendo coca cola / esperando você sair / esperando você chegar”.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Renée


Eu fico aqui, com os meus dois pés afundados na terra (porque, querida, por essas bandas não neva nunca - você sabe - e o único lugar que temos para afundar nossos pés limpos é a terra) pensando em como você infectou minhas vias respiratórias com o seu vestido florido. Anotei em um guardanapo de papel todas as coisas que me remetiam a você enquanto sentava-se na mesa ao lado: seda, pele, pétala, morango, linho, fita de cetim, cabelos brilhantes. Tudo o que é macio.
Queria saber de qual movie star dos anos 50 você roubou esse teu ar blasé e de qual roqueira durona você furtou essa faísca de perversidade do fundo dos teus olhos. Olhos estes virados com repulsa em minha direção: a confirmação do meu fascínio unilateral.
Eu, um sujeito provinciano e despreocupado, que nunca encasqueta com nada, encasquetei com o teu jeito elegante de sentar que só as mulheres belas sabem como fazer, ou a forma como caminha - uma flor noturna estonteante, flutua, flutua.
Te observo sem dó, sem mágoa nem ofensa sem que você perceba os olhos deste sujeito distraído (mas não estúpido) repousando a todo momento na tua magreza. Tem um sabor de frutas fluindo ao seu redor junto com o aroma do ar que não sei explicar (tão, tão distraído), que não sei reparar nem descrever.
De quem é que herdou estes traços sutis e estes braços finos, essa delicadeza feroz, essa meiga melancolia nos cantos do rosto? Eu queria saber, queria e quero saber, eu sempre quis. De que artista teria sido musa (porque se ainda não o foi, os artistas são todos tolos - ou cegos)? Você, sempre aquela visão fugídia, aquele encanto efêmero cruzando comigo mês ou outro em algum lugar abarrotado de gente, com dois ou três amigos/amores ao seu encalço - nunca sozinhos, estes teus olhos grandes e tristes - roubando minha acanhada atenção.
Os meus pés afundados na terra lentamente amolecem. Os meus pés frágeis cedem, desistem. Qual será o sedativo inebriante que você passa nos pulsos e atrás das orelhas e sai por aí dizendo que é perfume? Boa-noite-cinderela? Boa noite, Cinderela. Boa noite.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Cru


O ambiente parecia observar uma gota de suor escorrer entre minhas pálpebras, finas o suficiente para deixar visíveis as pequenas veias ao redor dos olhos. Eu fingia que o sofá assistia à TV da sala, enquanto – como uma criança perdida em outra dimensão – observava o reflexo de uma cadeira no chão absurdamente limpo. Entretida. O chão estupendamente higiênico, refletindo a imagem daquela cadeira preta e tosca, me fazia sentir imunda, deitada sobre ele com a nuca transpirando no calor importuno. Eu costumava odiar o calor tanto quanto o odeio agora e o piso era o único lugar suficientemente frio para me fazer suportá-lo. Lavado e cristalino. Mais alinhado do que eu, o próprio chão! Dane-se – eu pensava. Era domingo. E não há nada para se fazer além de afundar-se (em filmes ou comida, talvez em piscinas ou em tédio, qualquer coisa que enlace ao seu humor). De qualquer forma, eu sabia que não adiantava lutar contra o mal da pré-segunda: tudo é cru aos domingos.
Neste dia, o ar é falsamente leve e o próprio sol, ainda que tolamente brilhante, é preguiçoso. Tenho certeza: se o sol fosse boi ou porco, seria servido cru (ou semi), sangrando, rechonchudo e gorduroso. Como as carnes que essa gente costuma assar aos domingos. Essa carne lenta e vermelha, ardente.
Acabei com muitas formigas aquela tarde – aqueles seres minúsculos e pretos, que pareciam ter a incrível e irritante habilidade de se multiplicar – para que não sujassem o chão. O meu chão minuciosamente brilhante, quase um espelho, livrando com sua frieza a minha carne das brasas. A minha pele, aquele órgão pálido e enorme, com duas feridas abertas nos pés que insistiam em não cicatrizar, mais ou menos refrescadas por um enorme e gélido pavimento de granito. Aquelas feridas vermelhas, pouco profundas, mas nem por isso menos intrigantes, repousadas no topo dos meus dois pés. Vermelho no branco. Recortadas pelo ar quente pouco denso e abafado.
A minha respiração era lenta e nem por isso calma, parecendo ela mesma gerar a sua dose de frescor momentâneo. Deitada ali, como uma carcaça, um animal abatido em vermelho, uma estrutura de ossos, sangue, pele e calor. O meu corpo estendido – a carne crua dos domingos.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Ela Que Não Sabia


Ela se escondia entre aglomerados de lascas de madeira durante o dia por ter medo da claridade do sol. Ela não era capaz de limpar a sua própria imundice e prestar atenção em nada. Havia deixado pilhas de papéis com todos os seus escritos debaixo de uma escada para o cara que ela supostamente amava. Infectava-o com uma falsa sensação de liberdade comprada; com seus olhos derretidos em sarcasmo e poder, ela deixava-o livre sabendo que ele não iria a lugar algum enquanto ela ainda possuísse aquele sorriso irônico estampado no rosto. Era tudo o que sabia fazer: deboches e textos. As suas manhãs de domingo e as tardes de segunda eram sempre dor-de-cabeça porque os sábados à noite a embebedavam. Ela matava baratas para se sentir limpa. O cheiro de menta dos carros quase vazios a faziam querer fugir para um bar que possuísse assentos almofadados e confortáveis ao lado de um ou dois amigos que tinha em mente.
A garota lembrava que o cara que deveria amar cheirava a palco por alguma razão absurda e desconhecida, andava muito reto e sério – coisa que irritava seus nervos e fazia com que ela estivesse a todo o momento em posição de ataque (como se pedisse uma atitude: lute ou conserte-se). Ela raspava a cera de velas de aniversários passados quando estava nervosa - como um ratinho roedor de queijos - destruindo toda a matéria que pudesse desintegrar e estragar. Vestia-se com as roupas dele e não sabia limpar as próprias unhas porque estavam sempre curtas demais para que se importasse e longas o suficiente para que arranhasse os próprios joelhos avermelhados. Sabia cuspir, xingar e gemer, mas parecia mais um garoto assustado trancafiado em um quarto cheio de barulhos estranhos e uivos sombrios. Gostava de segurar as mãos das poucas pessoas que amava porque isso a fazia sentir viva e tolamente feliz, procurava por parte da sua identidade esquecida em qualquer pedaço de arte que conseguisse encontrar para que se sentisse alimentada. Ela não soluçava na frente dos outros porque se sentia nua. Ela não queria se sentir nua porque precisava ser aceita. Ela precisava ser aceita porque sabia fazer acertos. E ela só acertava quando aprendia a soluçar na frente dos outros.
Essa tal moça sabia dançar com os pés descalços até que estes começassem a descamar nas solas, tirava fotos da neblina matinal para que não sentisse saudade do inverno acolhedor e só usava tênis sujos que a deixavam com a estatura baixa e atarracada. Cometia erros na vida como se tropeçasse em pedras e jamais falhava quando se tratava de análises e críticas. Ela escondia-se debaixo de cobertores felpudos e canecas de café para que o seu suposto amado não a encontrasse e para que aprendesse a sobreviver com o ar rarefeito e respirar em lugares sem ventilação. Ela se contradizia ao se destruir por não saber desejar as coisas, fazia tudo (absolutamente tudo) para que sentisse os efeitos dos seus próprios atos e para que, somente então, pudesse ser humana.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Sobre Pessoas


É dezembro.
É dezembro e eu gostaria de poder escrever um conto sobre olhos e bocas vermelhas, e sobre quase-beijos roubados no corredor.
Gostaria de derreter as tardes passadas na rua, nos livros, no topo de escadas em palavras que traduzissem a existência – mas não posso. Não há caos para me fazer acordar. A atmosfera é leve e tênue, exceto por essa incômoda sensação de estar sendo vigiada por um cão de guarda a todo o momento. A leveza dos dias é quase palpável e se estende das minhas mãos aos sorrisos de pessoas dançantes ao meu redor. Saldo? Um amontoado do sabor salgado de lágrimas de riso extremo escorrendo dos olhos.
Minhas bochechas ainda coram com a brisa gélida (mais uma bobagem pessoal) e me lembram das despedidas que não quero ter de fazer. Todas as pessoas certas duram pouco - nada mais que um sopro - e as erradas permanecem tempo enorme que parece vida-toda: sempre com as suas asneiras descartáveis.
Caso possuísse algum dom alquimista que me proporcionasse o derretimento do tempo e que me permitisse fundir as horas em líquido abundante, guardaria todas as horas exultantes (e as terríveis) em pequenos potes de vidro. Conservaria o tempo e beberia dele até a última gota. Escorreriam pela minha garganta, todos: a gente que me sorri e a que me ensurdece com gritos, a gente que me perturba e a que me alenta sem nem saber que o faz. Deslizariam por minhas entranhas tomadas de nostalgia e desespero velado, como se por elas eu tivesse subitamente me apaixonado. As pessoas todas, sem distinção de raça sexo idade ou gostos, guardadas nas lembranças desse tempo convertido em líquido, iriam embebedar-me a mente com suas personalidades diversas (tão opostas, tão extraordinárias, tão podres). As suas presenças se perpetuariam em minhas vísceras pegajosas e eu as cuidaria como uma mãe amando o feto em seu útero. Eu amaria todas essas pessoas, como se fossem minhas.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Lovers In 68


Os amantes franceses passeavam pela Champs-Élysées exalando o seu ar sofisticado durante o verão de 68. Os rapazes gostavam de ouvir a vendedora de jornais, com sua voz doce e suave, gritar pelo seu sustento: “New York Herald Tribune! New York Herald Tribune!”. As garotas usavam vestidos de cetim e boinas tortas na cabeça, transformando as ruas em cinzeiros e os garotos em cães babões. Tanto eles quanto elas assinavam poemas como petições e petições como poemas, discutindo sobre Hendrix ou Clapton, Chaplin ou Godard, Beatles ou Beatles, sobre lutar ou sobre calar. Desfilavam seus rostos belos e o discurso comunista nos becos centrais sorrateiramente revolucionando as frias esquinas debaixo do apurado faro do Estado. Eles não possuíam armas – apenas bombas – embora fossem românticos o suficiente para andarem com livros e instrumentos nas mãos. Eles não existiram e foram o seu próprio sonho utópico, eles existiram e não foram heróis da própria luta. Eles não conheceram o Vietnã ou Hiroshima, mas souberam prender todo o mal de uma guerra nos versos, atando todas as pontas soltas daquele mundo sangrento nas cordas das guitarras tocadas com os dentes.
Os apaixonados do Arco do Triunfo em 68 beijavam-se entre gritos de vida ou morte e caminhavam entre mãos dadas por ruas infestadas de gente desesperada por algo que parecia ser justiça, desviando de enormes montes de tralha empilhadas nos postes de luz. Ousavam amar-se sobre o céu vermelho da revolta, espalhando graça e delicadeza aonde as bandeiras queimavam e as armas mais atiravam, ferindo as roucas vozes de protesto. Desafiavam o caos ao gozar da paz de tudo o que é mais puro e único dentro do olho do furacão. Eles foram às farpas e as enfrentaram, foram um exército de dois e o clamor de muitos, a voz esperançosa no escuro, o suspiro ansioso na parafernália intensa. E eles foram (acima de tudo) o fim da luta e do grito, porque agora, os amantes franceses de 1968 estão todos calados. De tédio e desgosto.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Avesso


O tempo não permite que eu passe toda a minha noite conversando casualidades com a sua pessoa. O dia que está para amanhecer nas próximas cinco horas me impede. Em suas palavras não enxergo nem um reflexo das minhas porque cada detalhe é tão particular e único que nem mesmo posso estender-me até eles.
Você agradece enquanto eu só faço rogar.
Você samba enquanto eu escrevo.
Você beija enquanto eu transpiro.
Você canta enquanto eu gaguejo.
Você não me copia, não se preocupa, alarde não faz, nunca sentou para ouvir e nunca sofreu para amar, mas só porque se apaixona e desapaixona com a facilidade de um estalar de dedos. Seus olhos não imitam, o seu corpo não se repete, é tão arranjado e exclusivamente seu. Você não sabe o que é o resto, a sobra. Você engole o prato inteiro e não deixa resíduos e ainda lambe os beiços e os dedos para ter certeza de que não há um grão de fora da sua garganta. Você tem um andar bonito e elegante enquanto eu desengonçada e tortamente me movo. Jamais sentiu aflição alguma, pois essa é, na verdade, a única vez que veio a sentir alguma coisa que não fosse a alienação costumeira.
Como em uma carta de alguém distante te desejo a fantasia dos dias claros e o triste otimismo do pobre cidadão. Esperando que você não padeça enquanto parto furtando toda a sua elegância, dando pouca importância às tuas dores, aos teus casos mal resolvidos, aos teus versos mal redigidos. Vou-me embora dançando, correndo, vibrando; cantando um tom desafinado, bebendo toda a água do copo, engolindo toda a comida do prato.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Afetuosamente,


A cidade cheira à chuva. O meu próprio corpo e a epiderme exposta que o reveste cheiram à chuva. E o meu corpo é a enfermidade e o espasmo, o cansaço e a calma. Um par de mãos me sufoca o pescoço sobre o chão de tecidos, as mãos pertencentes ao rosto de olhos vermelhos. As mãos de forças inconscientes - as mesmas que outrora acariciaram o teto almofadado em um gesto despercebidamente delicado.
Há certo tempo venho sendo a odiada destes olhos vermelhos e a querida dos olhos obscuros. Ambos me sufocam em seus desejos incessantes – por sangue ou por abraços. Não sei para quem corro: ao abismo ou às flores? Ao medo ou ao agrado? Às unhas ferozes por carne ou às unhas ferozes por amor? O meu corpo ensopado escorre para acolá desses pares de olhos e não me dá tempo de escolha. Resta-me outro caminho.
O caminho em que meu carinho imenso é todo direcionado aos olhos pálidos, é incessante como a garoa – que nunca morre, apenas sossega, para logo depois retornar ao seu círculo vicioso. Os lábios pertencentes a estes olhos descorados costumavam dizer que “a dor é todo ponto inatingível e incompreensível daquilo que um dia quisemos ter” sem saber que a própria cor destes olhos era o meu ponto inatingível neste pequeno-vasto mundo. O mundo em que meu afeto é líquido, é chuva que cai, e esta cidade... esta cidade é o dilúvio que eu criei para pôr cor nos teus olhos.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Quebrando Silêncios


Faço desenhos em minhas pernas pálidas com canetas coloridas enquanto absorvo acusações e as palavras indelicadas. Tentando entender a razão de ser do ódio. As janelas abertas avisam-me de que as ruas têm cheiro de maresia e aspecto de início de verão – e eu com isso? Estou composta, reta e sã. Com um gosto doce na boca, de frutas vermelhas, dando-me conta do passar incessante dos segundos no relógio. No silêncio vagaroso, digo em voz alta todas as coisas que vem em minha cabeça em instantes pelo simples prazer de cortar com o som da própria voz o sossego da tarde:
- Sorvete de nozes! Dedos. Vírgula, Números! Voz nasal. Torneira. Tosse... Cansaço. Água; Uma caixa. Impulso? Música lenta...Horas perdidas. Sorriso--

O aborrecimento e a raiva não vieram. Ainda não os entendo, mas compreendo a tranqüilidade em saber que existem. Ou talvez eu entenda a raiva e o ódio – apenas não me importo com eles – porque agora respiro um suspiro calmante. O suspiro calmante do não-sentir. Simples e fácil, o sopro de alívio é quase um produto pronto, comprado em uma prateleira de vidro e sob medida. A medida da sua aflição.
Torna-se fácil não se importar com o que estão dizendo ou com o que estão analisando a respeito das coisas que você não disse quando o seu verme interior exclama um ‘dane-se’ aos que não fazem idéia do que você pensa, aos que não conhecem sua capacidade de não mais desejar e de não mais querer. Aqueles que não se importam com o que há do lado de cá do muro.
O vento assusta-me um pouco e quebra meus devaneios como há pouco quebrei o silêncio da tarde. Eu, despedaçando silêncios, quem diria. Quem diria?
Eu diria.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Desordem


O verme causador das enfermidades, as traças roedoras dos móveis da sala, as teias de aranha no teto claro não são nada.
Quando a pior mentira é a omissão,
Quando o maior caos é o silêncio,
Quando o pior erro ninguém cometeu.
Não há problema algum exceto a própria desordem que foi causada sem que se percebesse, como alguém que quebra uma bailarina de vidro com um movimento brusco e distraído, pondo fim ao frágil cristal de silhueta delicada. Não existem máscaras ou disfarces, tudo o que há são os lábios calados e a mente despercebida; entretanto, não há quem acredite nos seus verbos, advérbios, olhos e metáforas.
Quando não há diferença entre você mesmo e um parasita – bingo. Este é o erro. Todos os seus atos tornam-se pecados, a sua doçura parece não existir e o seu tempo é curto demais. Todos os fatos contra as suas falhas, desafiando a ponta do seu nariz em uma provocação dolorosa: e aí, amigo? Onde está o ar que você respira agora? Onde está a sua pompa e o aspecto de dignidade?
Olha-se no espelho, torna-se o sanguessuga imundo e não faz idéia de como se via antes disso diante do mundo. Porque os reflexos eram todos mentirosos, escondendo todo o mal que causava a si mesmo. E você mesmo não sabia que era a insignificância, o gancho perdido.
Quando você despedaçou seu próprio teto e não percebeu, quem se desintegra é você. Seu rosto não encontra um ombro – felizmente – encontra seis. Seus dedos não mais destroem, no entanto, escorrem de mágoa própria e desgosto próprio. A boca é seca porque não há mais líquidos a verter. Teu rosto é uma cópia amarga, uma imitação barata do que mais temia. Por fim, você recebe a pena perpétua de se lembrar do que cometeu. É isso: dar-se conta e cair em si. You're invisible now, you got no secrets to conceal; like a complete unknown, just like a rolling stone.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Recital (Do Que É Belo)


Eu gosto das coisas bonitas que diz e das poesias que recita quando está distraído. Eu gosto do que é belo, ainda que soe perigoso, cruel e ameaçador. Não há segredo algum em suas palavras assim como não possuo segredo algum. Só há um ar de mistério encobrindo-me como uma capa, que é nada mais que isso: nada.
O entendimento que existe no nosso silêncio me satisfaz e somos dois pedaços sólidos e invertidos, cada qual com seu cada um, com seus braços abertos sobre o ar de novembro. Não há vergonha em ser sutil, não há dedos suficientes para cobrir a boca que sorri risos imensos ou para levar aos lábios o sustento da alma.
Tenho mãos que cedem e abdicam de sua pele, tenho uma garganta que trava com sua aflição e uma mente que descansa ao esquecer-se de uma ausência. Não me importo em somente observar porque tocar só pude uma vez; não me importo em saber que sorri porque rir só te fiz em uma ocasião. Não me importo em saber que não amas alguém. Só me importo em saber que é, está e suspira. Enquanto assisto a tua beleza viva admitir-se tola. Enquanto espero que me diga as coisas que ninguém nota. Enquanto amo sem amar.
As mãos caem por teu rosto austero, as pernas enfraquecem sobre os pés cansados. Absolutamente tudo acontece se o ar é propício e tudo é tão esquivo, tão frágil diante dos olhos daquele que também é fraco e propenso a toda e qualquer coisa.
O belo só é belo porque arruína e, por saber-se arruinado, sorri embasbacado diante de tudo.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Porta de Saída


Pousando em um caos confortável cercado por paredes brancas outra vez.
Eu deixei repousar em você poeiras verdes dos meus olhos e pedaços de poesia vermelha vindos do meu cabelo? Poderei alcançar-te outra vez quando o ambiente estiver suscetível a isso?
Eu gostaria, eu poderia, eu faria, desejaria, dançaria, giraria, suaria e temeria passar por tudo outra vez. De bom grado, sorriso aberto, mãos estendidas e pernas amolecidas. Por horas ou só alguns segundos. Seria mais fácil se saísse da fortaleza e descesse do topo da torre de fingimento. Porque ambos sabemos e só fazemos fingir, como se nada acontecesse e nenhuma sombra de anseio pairasse no ar. Porque sabemos que paira (e invade). E mesmo que isso acabasse, que a sombra findasse, que tudo se realizasse – não significaria nada além de um abalo momentâneo, com fim estabelecido antes mesmo do seu começo.
Quem foi que se esqueceu de me ensinar a multiplicar instantes extraordinários? Quem é que não soube me mostrar como se preservam as boas coisas desse lugar? Quem é que se esqueceu de se esquecer e ainda persiste me fazendo lembrar?
Suspiro em um canto sem que saiba, não duvidando de nada, rezando por nada, torcendo por tudo. Estou sentada aqui e não sou eu. Estou escondida atrás dessa porta clara e não sou eu. Estou parada, parecendo calma, plácida e lúcida, mas só porque não me deixam, a plenos pulmões, dizer as provocações que adoraria poder fazer. Continuam não me permitindo anunciar todas as inutilidades que me cochicham vontades incessantes, excessivas, de altos brados.
As pessoas que possuem agora os seus “instantes de dois” continuam a cercar-me com seus risos sadios, dedos de anéis e lábios de amantes, enquanto tudo o que resta em minhas mãos é o vazio de uma fuga (uma fuga que não é minha).

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

E Se?


Luzes, olhos e vozes. Cheiros, chuva e palavras. Contentamento, escuridão e braços estendidos.
O que não foi não era para ser, enquanto tudo pipocava em chamas azuis.
Minhas pálpebras desfalecem quando o sol se põe. Minha pele brilha no canto vazio. Os papéis foram picados, ficam-se os cortes e um riso feliz. Dois anos, três minutos.
(tempo-tempo-tempo-tempo)
Olhares com bons aromas, abraços de belos tons. Tudo isso me convém, ainda que este seja o mundo errado com pessoas distorcidas, de corações invertidos, tortos, de vontades errantes.
(Have I ever told you that I could love you easily?)
engraçada a forma como as vidas se cruzam
a engraçada forma como as vidas cruzam-se
a forma engraçada como as vidas se cruzam
é engraçada a forma como cruzam-se as vidas
se cruzam as vidas – engraçada é a forma!
formas se cruzam em engraçadas vidas
vidas cruzadas como em formas engraçadas
formas vivas cruzadas com graça
graciosas formas cruzam-se em vida
cruzamentos formados em vidas engraçadas
vidas? cruzaram-se as nossas, com graça!
V I D A S G R A C I O S A M E N T E P O S T A S
E M U M C R U Z A M E N T O

Primeiro, um vislumbre de algumas horas sob luzes douradas, disfarces encobrindo faces risonhas em um instante de dois. Depois, um bilhete rascunhado com elogios. Em seguida, espionando irritantemente sobre aberturas de portas. Por fim, as palavras certas e, entretanto, nunca suficientes; a realidade exposta; os gestos ternos e sempre sinceros e ainda assim nunca bastantes para que eu demonstrasse - porque eu só precisava gritar e exclamar; e eu só queria gritar e exclamar que tudo é tão possível, mas tão improvável.
(ah, se o mundo fosse outro, se ele não girasse,
se ele fosse um pouco mais preto e branco
ah, se o mundo tivesse outros moldes
se minha cara fosse outra,
se sua essência fosse outra
ah, se fôssemos pessoas certas
se fôssemos lúcidos
se fôssemos santos! – ah)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Dentes Sedentos


Bolhas flutuantes de fascínio fluindo por cada centímetro de um corpo magro. Olhos colados em um rosto próximo que suspira. De meu lugar, observo dentes quadrados e perfeitamente postos na gengiva prontos para morder, rasgar e dilacerar. Os dentes prontos para sentir novamente o sabor doce, amargo, agridoce, podre e delicioso – tudo é o mesmo! Porque os dentes é que sentem. E são as unhas que agridem de forma afetuosa. E os pés que se sujam em uma poeira desgastada.
Assisto, pois estou tomada por um cansaço-alívio de quem correu, de quem pulou e de quem soltou os ossos em um dia suave, com cabelos cheirosos e pernas rígidas. Blasfemando os erros cometidos com a voz rouca, observando curiosamente o desejo repentino aflorar nos dedos. Nem mesmo sabendo o porquê. Nem mesmo entendendo o que é que me fazia empurrar os braços naquela direção, virar a cabeça falsamente raivosa para o lado de lá e agitar as mãos de forma tola para cá. Um arrebatamento tomando conta de cada minúsculo poro e cada miúda célula, da raiz dos dentes até a borda do calcanhar. Tal sensação ignorava a cabeça e o cérebro, não havendo espaço algum para lucidez ou consciência, apenas instinto e impulso direcionados involuntariamente para uma loucura palpável ali, no alcance das mãos. O desejo incontrolável de ferir com cuidado, destroçar com meiguice, rasgar com afeto.
Quando permitir que eu me afogue em minha própria sede, não fuja, não se deixe ir. Mal aprendi a fazer conflito, machucar nem devo saber. Sossegue: talvez eu não fira, talvez não te doa, talvez nem tenha dentes e unhas - devo ter arrancado todas.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Charada


"Eu traço tantos planos
Brilhantes, antes
De te ganhar num salto
Mortal, de iniciante
(...)
Por enquanto, por enquanto
Eu miro o índio que eu sou
No teu ser
E alcanço
Viagens tão óbvias
Loucuras tão sóbrias
De um iniciante"


O que é que me tira a voz quando devo gritar?
O que é que endurece meus braços quando devo abraçar?
O que é que prende minhas pernas quando devo correr?
O que é que me amolece quando preciso de rigidez?
O que é que me dói quando estou sorrindo?
O que é que eu não sei?
O que é que me faz rir quando não deveria de coisas estúpidas, mais estúpidas do que eu?
Poucas vezes uma bomba, outras tantas um silêncio, um sussurro baixo, uma graça burra, um saber calado.
O que é essa outra face que se debate em loucura aqui dentro e ninguém vê, ninguém sabe, ninguém gosta e ninguém nunca ouviu falar? Clamando por uma atenção desajeitada, torta e sem jeito. Uma força que não aparenta e anda à minha espreita como uma sombra que nunca me abandona. Vez ou outra estende seus braços para fora de mim em busca de liberdade.
Algumas coisas nunca param de incomodar.
Algumas coisas nunca morrem e só se transformam em seus exatos opostos.
Algumas pessoas nasceram erradas nos momentos errados para os tempos errados e só elas me restam.
Dia desses amei você. Agora faz dois minutos que te odeio tanto e sempre. E espero que estoure e exploda longe daqui, enquanto aceno pacificamente para sua indiferença.
O que é que eu não sei?
O que é que eu não vejo?
O que é que eu não sinto?

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Ventania


O vento quebrava os vidros das janelas e derrubava os fios condutores de luz enquanto jogávamos conversa fora em uma sala lotada. Apreciando muito, sempre e tanto - nada menos que isso - entre olhares subentendidos e risonhos vibrando uma semi-desordem. Estava eu pedindo opiniões despretensiosas sobre meu andar esquisito, minhas mãos soltas e minha voz falha enquanto a ventania descontava sua ira nas árvores imensas que cercavam aquele espaço iluminado. Deixei que as músicas ecoassem, que você fizesse alvoroço e que as folhas ribombassem pela porta em um projeto de tempestade de verão.
Em meus olhos, o lá fora e ali dentro misturavam-se em uma só imagem: seus olhos saltados ora de riso e ora de nervos em sintonia com o aguaceiro e o vendaval ora enfurecidos e ora saltitantes do outro lado da janela quebrada. Gostaria de poder contar todos os pensamentos que permearam minha mente nas últimas semanas sem que risse, ignorasse-os ou virasse os olhos para minhas afirmações. Nem mesmo que fosse só um suspiro secreto sussurrado solitariamente pairando perto dos seus ouvidos desatentos.
Parece tão fácil contar-te todas as outras coisas enquanto apenas uma única verdade esgana na garganta sem que possa ser dita e nem mesmo repetida à própria sombra. Bastar-me-ia um pedacinho de tempo, alguns segundos talvez, qualquer um destes que você desperdiça observando as pessoas erradas para que eu te contasse e você esnobasse totalmente minha face desejosa. Sem dizer nada mais, despedi-me e mesmo sem lhe falar, estou certa que já sabe o que é que me irrita tanto e o que é que anseio tanto. Pois, estou lhe dizendo agora... meus olhos repletos de vontades não sabem mentir.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Campo Minado


Construíram muros onde eu nunca quis que o fizessem e agora sobro em um vácuo recheado de perguntas que eu não soube fazer. Fingi que todas aquelas palavras indiretas escritas não-sei-aonde e aquele gesto doce eram sobre mim porque havia alguma coisa clamando (pedindo e sussurrando um acanhado desejo) aqui dentro para que fossem sobre mim. E esta dose de ilusão me fez tão bem tão tanto tão bem. Tão estranho assistir lágrimas caírem sobre um sorriso calmo. Tão sutis as pequenas gotas cristalinas molhando uma felicidade serena que observo no espelho. Perdoe minha obviedade, por talvez não conseguir, por estupidamente tentar, por silenciar o que deveria ser gritado a plenos pulmões pelos quatro cantos daquele lugar que tanto gosto.
Repetindo corajosamente as mesmas frases sobre o tapete sujo, tento tatear alguma ideia bendita que facilite meus passos e meus gestos meio grosseiros, meio suaves, meio bruscos e meio frágeis. Não quero sentar-me por quatro horas inteiras entre essas paredes de cor marrom-amarelado ouvindo falatórios que não me trazem nada além de tédio e um par de ouvidos ensurdecidos pelo barulho de vozes alarmadas conversando freneticamente entre si. Só quero aquele outro lugar, aquele mais raro, aquele que dói, mas que também sorri. No qual encontro conforto ainda que por vezes seja como pisar em ovos, escolhendo minhas palavras com um cuidado indevido. Essa felicidade esquisita queimando por dias em meus olhos sonolentos sem que ninguém soubesse sobrevive sorrateira em algum canto de mim, cochichando-me as regras de sobrevivência nesse campo minado que ainda aprendo a respeitar.

sábado, 30 de outubro de 2010

Encaixotados


A tralha se acumulando nos lugares errados como montes de nada a atrapalhar-me; a tralha sem-nome; a tralha incessante jogada aos meus pés em caixas pardas e etiquetadas. A ternura arrumou suas malas e está de partida para outra casa que eu conheço, mas não possuo as chaves da porta de entrada.
Em algum canto oculto restou a beleza que tanto amei (e desperdicei, recompus e apreciei com os lábios um pouco abertos de admiração) decidida a esconder-se e então, partir, desbravar sabores que aqui não pode provar.
Essa beleza-ternura despede-se em partes, continuamente e aos poucos, caixas por caixas, após muita birra, excessos e sorrisos amarelos. Uma fina linha de poeira começa a formar-se sobre os seus objetos encaixotados que eu zelosamente cobri com lençóis para evitar o desgaste. E agora eu só digo adeus. Saiba que o que restou ainda paira no ar como a névoa branca fazendo cair a garoa matutina e que eu posso tocar tais restos com meus braços estendidos no ar. Porque se ouve o silêncio, enxerga-se o transparente, o nada também é uma marca. E a minha casa é um mar de lençóis.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Sem Mais


O nunca me persegue. Quebrei os ponteiros dos relógios, as ampulhetas empoeiradas e todos os possíveis marcadores de tempo. Escondi o sol com um manto negro em minhas janelas e, mesmo assim, abusei das portas abertas para que me trouxessem ventos arejados soprando sobre minha pele. Fujo do tempo, busco uma nova estação, uma temporada que murche as flores desabrochadas nas últimas semanas – que restem somente as suas pétalas e seu aroma ameno acalentando minha placidez interna.
Sinto uma harmonia insossa que já se faz presente como a ponta de uma imensa montanha de esquecimento. Um fio condutor de sossego na alma. Sei que o redemoinho, firme e farto, pode voltar a qualquer segundo em que meus olhos despercebidos voltarem a deixar-se turvos. Não acho que me importe se tal estonteamento retornar, já que agora, com deleitoso prazer, adquiri certo ar de firmeza. Uma solidez que não me cabe e resolveu dar as caras por esse ambiente cinza e opaco, uma espécie de rocha que resolveu dar-me as costas e deixar-se substituir por uma gargalhada extenuante aqui e acolá. Um sopro de alívio.
Pode contar-me sobre todos os teus detalhes e pormenores - agora quero, posso, devo, desejo e anseio ouvir. Relate-me. Degusta-me. Deleite-se. Descreva-me. A indiferença sutil tomou posse e mata lentamente esse ser vil e desprezível: o nunca, que insistiu em caçar-me ao longo de anos, adentrando por portas escancaradas. Admiravelmente dessa vez consegui um feito único e glorioso: ignorei todas as possibilidades perdidas que o nunca havia me extorquido. Levantei meu queixo e meu pescoço pendido, assistindo-o corroer-se. Excepcionalmente dessa vez quem extorquira fora eu, ao deixar o leite derramado escorrer sem piedade alguma. E não há mais prantos sobre o líquido esvaído.

domingo, 24 de outubro de 2010

Contaram-me:


Só os poetas fazem do amor, pausa e da dor, combustível. Só os poetas sabem que todas as ruas abarrotadas de gente são tristes, que todos os ônibus do mundo são tristes, e os postos de beira de estrada são tristes, e os vãos entre as poltronas: tristes.
Os poetas têm certeza, porém, que só as palavras são felizes, e os atores no palco é que são felizes, e os sabores postos nos lábios são felizes, tudo o que fala e tudo o que expressa: feliz. Eu, que mal conheço Clarice e Pessoa, que já escrevi aos prantos e ri de tragédias, que tropeço em qualquer esquina e falo baixo; eu, que tolamente finjo, que estupidamente ponho-me a amar tanto quanto a odiar, que descobri cedo que vim ao mundo muito tarde, que não durmo, eu que calo. Eu, que descobri na aurora do anteontem que o raro talvez não seja impossível e que trocaria todos os amanhãs por um único minuto jogada em certo lugar macio que não é o meu, como se de vento em popa navegasse em outra superfície de outro lugar em outro tempo que não conheci. A esquisito-caladinha e eventual insano-falante que troca a melancolia pelo êxtase, que chora sentada em poltronas (porque estas são cheias de pontos frágeis e melancólicos) e que ri no silêncio da pausa já foi a tempo avisada de todas as coisas e saberes que os poetas guardam para si. Alguém tratou de avisar, algum vento de outubro, algum frescor de frutas de verão, alguma voz escondida em um corredor extenso trouxe o aviso. Lembraram-me de que os poetas nascem com graça e que deles escorre um mel de beleza que não se vê a não ser que se seja também como eles, um brilho na ponta dos pés como um ramo de flores, um encanto posto nos braços tal quais abraços mornos. Um dote dos deuses, um doce segredo nobre e sublime: o dom das p-a-l-a-v-r-a-s.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Vertigem


Preciso dormir, preciso sossegar um pouquinho, preciso parar e me cansar de persistir, esquecer do que me cospem na cara, acalmar esse maldito espírito vagabundo e errante, desabar dessa nuvem desconfortante de pedra por onde andei deitada.
Deixe-me cair, porque estar nas alturas não é bom.
Deixe-me emergir, porque o fundo das águas não mais sorri para mim.
Deixe-me trocar minhas inquietações por músicas agressivas estourando meus tímpanos.
Deixe-me desabar lentamente pela última vez como uma montanha de plumas.
São duas, três, quatro da manhã, meu cérebro ferve e eu só gostaria de sentir essa realidade acordada, observar meu próprio desmoronamento acontecer pela última (?!) vez. Não mais interrogações ou dúvidas. Não mais hesitações ou miúdas ilusões. Não mais esperas ou expectativas. Tem de ser a última vez ou não me perdôo, não me aceito, me recuso a continuar, desisto de tudo, corro por meio mundo e não volto para cá.
Preciso aprender a olhar e não enxergar, conviver e não reparar, saber e não relembrar. De fato, todo esse tempo só me ensinou a fazer um drama como ninguém com o mesmo esforço de erguer uma pena (percebe?). Ar, ar, ar, ar! Eu só preciso de um pouco mais de ar. Um pouco mais de espaço que me permita um suspiro de alívio, um momento de frescor, um conforto soturno em pensamento. Um sorvete em um dia quente de verão, uma janela aberta em uma estufa trancada. Algo macio para poder tocar quando estender minhas mãos no redemoinho do desmaio. Algo novo.
Tal anseio não é bom, mas talvez um dia (ou daqui a pouco, quando eu finalmente suspirar de alívio) torne-se feliz.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Conselho Inútil


Vamos parar com esse jogo em que você finge que é o que diz enquanto eu finjo que acredito. Vamos parar! Posso te dar um espelho caso você não tenha um. Só não quero mais ter que simular que acredito, que espero, que me nego a ver. Está tudo tão claro. Ainda devo realmente ter esse terceiro olho que fareja e pressente. Cá estou, redigindo um conselho para ambos eu e você, esperando que seja o suficiente e que se dê conta de que agir como se fosse outra pessoa não leva a lugar algum. Este jogo sim é o meu: costurando com letras e consertando com palavras.
Acorde. Não posso ser seu antídoto enquanto eu mesma só conheço os venenos doces que coçam e ardem na garganta. Não precisa tentar me decifrar, não precisa me engolir, me suportar, respirar o mesmo ar que eu, não precisa me amar, desvendar meus por quês, decorar minhas músicas, adquirir minha apatia, acreditar que tudo o que escrevo é sobre alguém, conhecer meus amigos, notar o meu silêncio, secar as minhas lágrimas, me acompanhar até a porta de casa, saber dos meus finais de semana, quantas pessoas já amei, de quem tenho ódio, se prefiro o frio ao calor, quantos anos eu tenho, se prefiro Lennon, George ou Ringo, se gosto de fotografia, quais filmes assisti semana passada. Poupe seu tempo, sua saliva, seus dedos, suas pernas, seu esforço mental. Se interesse pelo pouco que sabe, pela sombra que me persegue, pelas coisas que estão estampadas e não há como negar, pela aparência tola e nada mais. Não se infiltre aqui dentro – ou infiltre-se, se estiver disposto! – mas já aviso: vai se perder tanto quanto eu.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Fighting For Peace


Preciso criar qualquer coisa de valor. Qualquer coisa que me permita transformar meus dedos e lápis em gatilhos de armas e que eu possa dispará-los, matando esse ponto agonizante. Matar essas possibilidades que insisto em não chamar de fatos e que continuam permeando meu interior distraído, embora toda a aflição tenha saído do peito e fluído para o cérebro com certa facilidade. É isso, não sinto mais – somente raciocino.
É isso mesmo? Este é o ilustre Senhor Conformismo? Ele, que fez o que sinto sair do peito e instalar-se no cérebro. Do sentir para o pensar, converti o “isso dói” em um simples “penso nisso”. A angústia é menor.
Contento-me com estas migalhas, mas única e exclusivamente porque eu tenho um pão inteiro escondido em meus bolsos.
(persisto adiando o corte final)
(melhorias em meu estado de espírito!)
(estoumelhor, estou me-lhor, estou-melhor, estou).
Estou. Criando. Re-criando. A. Mim. Sendo salva pelos rabiscos que fizeram em meus cadernos, pelos poemas anotados em folhas brancas e pelas expectativas que depositaram sobre meus esforços.
(cansei dos cantos tímidos e sorrateiros, eu só quero estar no centro, ei ei ei eu estou aqui, eu estou-)
Desvendando meus próprios escritos, achando algum sentido para meu subconsciente em uma fuga desesperada de tudo o que é real. Guerreando por sossego.
(quero o sossego do não sentir, misturado à inquietação de ser essencial em alguma coisa até que eu perceba que tudo isso não passaram de brutas tentativas desesperadas de ficar em paz).

domingo, 17 de outubro de 2010

Pensamentos Desconexos


Nem tudo sou eu e nem tudo magoa tanto e principalmente, nem tudo é suficiente por aqui. Sempre há sede e sempre há garra, unhas e dentes e outras pessoas se escondendo nos lugares que eu não conheço fazendo coisas que eu não consigo ou não posso fazer.
Descobri ao menos que tenho um faro apurado para certas coisas que não vem ao caso e que não tem me trazido nada além de uma ou outra decepção e pequenos instantes de valor com certo esforço. Descobri que só estou presa em um tempo errado com uma aparência errada e que por isso tenho meus braços atados.
Só pude pular em meio à massa e esquecer por alguns momentos das coisas que me faltam lembrando-me ansiadamente das coisas que ganhei e como nada faz sentido quando os seus ouvidos estão zumbindo com o som de guitarras e as suas pernas doloridas e como é boa a sensação de se sentar após isso em um canto confortável de uma sala com um bom tanto de gente interessante.
Só tinha voz para uma fala contraditória que dizia “deixe-me neste lugar que é o melhor do mundo e tire-me deste espaço que é o que mais me dói” sabendo que nem doía tanto assim e lembrando que havia um motivo bom para se estar ali, que deveria apreciar isso com um sorriso ou outro, um cansaço confortável nos meus pés descalços, principalmente porque eu sempre quis aquele lugar e que realmente era o melhor lugar do mundo naquele instante frágil e agradável.
Quis que o mundo fosse a Pangeia outra vez e que eu agüentasse andar muito mais do que agüento pular e me silenciar (aliás, sei pular tanto quanto me calar e me calo tanto que até me incomoda), poder falar todas as coisas absurdas que nunca passam pela minha memória distraída, ser capaz de viver como várias pessoas diferentes por alguns dias - dos sujeitos tolos aos geniais - e saber ser tudo aquilo que ainda não aprendi a ser porque bem, eu só nasci ontem e eu ainda não aprendi direito o que é de verdade esse negócio chamado vida.
PS.: Dei uma de Jack Kerouac e fingi me esquecer o que são pausas decentes.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Fragmentos de um Remetente Desconhecido


Todas as quartas-feiras, o homenzinho de roupas azuis e amarelas tem de passar em frente à minha casa e despejar encomendas, cartas e telegramas. Há algumas semanas passei a receber uns pacotes encapados em papel azul nas tardes de quarta-feira, pontualmente ás quinze horas. Aguardo em meu portão a chegada do carteiro. Espero como um cão aguardando um afago e lentamente me desperto enquanto observo os ponteiros do relógio chegarem à hora ansiada.
Na primeira semana, estranhei a tal “encomenda”. Não havia nome de remetente, apenas o destinatário. Meu nome reluzia em tinta preta em meio a um vazio papel branco. Abri-o cuidadosamente.
A primeira coisa que me enviou foi uma sombra. Algo negro saíra de dentro do pacote, uma pequena amostra de você. Essa sombra materializou uma imagem sua em meu cérebro por alguns poucos segundos: lá estava, entre a multidão frenética em um mês de maio calorento, ressaltando aos meus olhos devido a sua semelhança com alguém que eu venerava já há muito tempo e também devido a sua camiseta de cores contrastantes. Depois de segundos, a imagem desaparecera em brumas brancas. Senti-me um tanto perdida após esse vago acontecimento, pois perguntas brotavam em mim tal qual uma dúvida insistente sem sentido algum. E mais extraordinário ainda foi conseguir me sentir solitária quando aquela sombra repleta de vida decidiu esvanecer-se.
Na segunda semana não esperei, mas recebi um pacote azul idêntico da mesma forma. Trazia reflexões tuas a respeito de si mesmo. Todas as falhas, todas as coisas agradáveis e as impressões íntimas rabiscadas em uma letra corrida, com tinta preta borrada em um ou dois cantos, revelando certo descuido e muita pressa. Teve o cuidado de me enviar suas opiniões mais célebres, as mais absurdas e as mais baixas a respeito do seu próprio ser fazendo-me rir, soluçar, enraivecer e até mesmo avermelhar-se com as bobas anotações.
Na terceira semana, recebi teu aroma. A ansiedade em poder senti-lo de forma mais intensa causou-me um fino corte nos dedos quando fui rasgar o embrulho azul. O aroma era exatamente aquele que se é capaz de sentir entre os ombros e a nuca, guardado cuidadosamente em um vidro pequeno e sinuoso. Ora, desta vez havia sido um tanto covardia.
Nas semanas seguintes, todas as quartas-feiras ás quinze horas eu parava em meu portão, aguardando. Recebi sua voz um tanto febril em um gravador antigo. Recebi partes da tua pele morna um tanto machucada. Recebi uma miúda faísca dos seus olhos. Recebi algumas lágrimas suas, alguns lamentos. E também alguns risos estridentes, umas gargalhadas insanas. E tem sido assim durante todas essas semanas, desde aquele maio calorento: fragmentos de você chegam até mim pela caixa de correio.
Mandou-me tudo, todo o seu mundo, mas o coração – ah, o coração – esse você não quis mandar.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Ervas Daninhas


Cada vez tenho mais certeza de que sou uma masoquista incurável. Quando me encaminhei para retirar as ervas daninhas de meu jardim, percebi com sensata surpresa que elas possuíam certo encanto. Diga-me se não é de certa graça essa significativa forma de vida que insiste em crescer em meio as flores mais belas? Não é de se admirar que esse incômodo que deveria ser tão insignificante persevera em continuar onde está?
Não acha que a existência dessas plantas invasoras faz com que as flores tentem ser mais esplêndidas e viçosas, em uma espécie de competição saudável? Não vê que eu não consigo arrancá-las, pois são elas que me permitem ter um variado jardim? Teria visto você em mim a mesma beleza excêntrica que vejo nesse estúpido verde que insiste em sobreviver? Chega a ser bruta a forma como elas continuam a melhorar meus dias, com a simples confiança de sua existência em meu jardim.
Vida a longa às ervas daninhas! (é, eu realmente devo gostar de padecer).

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Carta a Quem Partiu


Lembro-me de que costumava ir à sua casa todas as semanas, fizesse chuva ou sol, ensopada de suor após andar tamanha distância.
Eu tento não amar mais ninguém, cara amiga. Partiram-me ao meio, e é estranho que você não saiba que “no meu mundo / um troço qualquer morreu / num corte lento e profundo”. É tão estranho não poder te contar, menina, é tão estranho. Fico pensando agora como ou com quem ocupa as tardes claras que nos presenteiam os últimos dias, se sente falta das minhas graças infames e o que diria se soubesse das minhas dores. Acabaríamos rindo disso, mas você foi embora e divido minhas cruéis decepções com a escuridão do meu próprio quarto solitário. Volte e vamos fazer planos mais uma vez, ajude-me a sair deste lugar tenebroso. Será que ainda teria paciência para me ouvir? A inutilidade nos separou, levou este pedaço de mim e ninguém me conhece direito neste caco de mundo que me sobrou. Perguntam por que pareço triste e eu sei que você odiava todo esse tipo de pergunta irritante assim como eu, porque não parecemos tristes – nós nascemos assim.
Meti-me numa história esquisita que só você entenderia ou então faria sarcasmos com a minha cara e com minha tamanha estupidez. Deus, como sou estúpida!, Sou tão estúpida!, Sou tão criança!
Você entenderia essa minha mania tola de parecer sempre madura demais, sempre querendo tudo o que é maduro demais para quem carrega tamanha pouca idade e essa minha mania de chorar pelos cantos nos banheiros trancados e de rir na cara dos outros do que não tem graça para ninguém além de mim mesma. Agora, decoro e releio textos sem que você dê suas opiniões, estou sem os julgamentos dos livros que você lê e das viagens que faz.
Estaríamos zombando dos nossos próprios corações partidos ou simplesmente trocando silêncios sobre canecas de chá ou palavras um pouco amargas que para os outros soariam como brigas, mas que para nós soavam como música.
Aliás, você se lembra das músicas? Ainda ouço todas elas e acho que as ouvirei eternamente, até o meu leito final, menina. Até os últimos dias os sons das guitarras, e as canções delicadas, os gritos ferozes e as letras de almas tortas como as nossas. E mais uma vez: como sou tola! Rabiscando esse projeto de carta para alguém que não mais se importa...

Uma Mentira Branca


Estive à procura dessas pequenas satisfações escondidas nos dias de coisas tolas, essas pequenas mentiras brancas (mentiras por um bem maior!) que facilitam a entrada de ar nos pulmões. Concentro-me na pausa, no espaço entre o diafragma e as cordas vocais. Estou viva. Este meu pequeno prazer é elástico, vibra como fios soltos de nylon, hesitando entre o simples contentamento e a certeza de que somente respirar não é o suficiente.
Sei que os filmes parecem retratar todo esse pequeno dilema – inspirar pelo nariz e expirar pela boca ou simplesmente parar. Simplesmente ter a certeza de que se pode pular de um alto penhasco, bater a cabeça, deixar-se eternamente flutuar no fundo das águas. E quem sabe um dia voltar à superfície como outra vida. Voltaria homem? Voltaria escassa de encantos? Rude? Ignorante? Ou bela de arder os olhos?
Talvez nem voltasse. Talvez essa coisa que chamam de “minha alma” resolvesse aproveitar a fina e final sensação de liberdade que nunca soubemos degustar enquanto seres de carne e osso.
Aliás, teria eu mesmo carne e ossos? Sinto-me pó. E só. E solta. De tão livre, presa em correntes de vento gelado adentrando pela porta. Acho impressionante a quantidade de palavras que já foram gastas por mim e por outros tantos em busca de um pouco mais de carne e ossos e menos desgosto. Drummond suportou o mundo nas costas. E o escreveu. Rachel e sua tangerine-girl iludiram-se com os bilhetes caídos do céu. E escreveu. Vinicius amou e des-amou amou e separou amou amou amou e escreveu. Todos eles.
Só não me leve tão a sério - tenho um nariz vermelho e umas bochechas engraçadas, sempre prontas a rir dos egos inflamados e das próprias falhas da vida (ou por que não, da sobrevivência?). Deixe-me rir (rir até chorar, ou somente isso: chorar) do meu próprio descontentamento e então voltar a agradecer, outra vez, por puramente respirar.

sábado, 9 de outubro de 2010

Encolhida


Tiro meus óculos para não enxergar as belezas que não são minhas e evitar desejá-las, prendo os cabelos para não ser percebida. Sou invisível na rua vazia e agradeço aos céus por parecer um fantasma no caminho escuro, pálida em desespero escondido, imperceptível. Alguém escrevera em tinta branca nos portões de um galpão abandonado um pedido de casamento. Eu não sorri ao lê-lo, coisa que faria com facilidade se os tempos não fossem de coração seco.
Tudo parecia tão errado, cada canto tão sujo, cada passo machucava minhas pernas, cada minúscula célula do meu corpo amortecia com o frio intenso. Sentia-me fraca.
Ignorei as crianças brincando na garagem com seus avós. Ignorei o casal conversando na porta da casa. Os seus risos, as suas faces risonhas, as suas mãos grudadas – fingi não vê-los. Havia coisas presas em mim, palavras ardentes presas em meus lábios, sangrando silenciosamente pela minha garganta. Gostaria de poder queimar, destruir as paredes pichadas com frases amáveis, cessar os sorrisos tolos, as mãos espalmadas. Por que vocês riem? Por que estão brincando? O mundo está sangrando aqui fora, nessas calçadas sombrias, rasgando pelos cantos medrosos com seus amores caídos, com seus sentimentos de chumbo, seus sorrisos de lata.
Não me dê forças, eu não quero ver teus encantos, eu não espero lembrar da tua voz quando o dia amanhecer. Quero fazer-te insignificante – como eu fui – e permanecer sorrateira, tímida, sólida. Mais ou menos inteira, o mais viva possível.
Por isso, não me conte: eu não quero saber. Eu não estou aqui.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Êxito


Para ela, parecia tão mais fácil mexer os dedos dos pés e das mãos a partir do momento em que não mais guardou pretensão alguma. Havia rasgado todas as fotos, vertido todas as lágrimas presas na garganta e limpado sua mente de todas as memórias doces. Havia expelido por inteiro suas inquietações, esquecera-se, acabou-se.
No entanto, as suas tentativas (até então bem-sucedidas) de recomeço foram por água abaixo outra vez. Pôde sentir seus órgãos internos transformando-se em líquido instantaneamente, esvaindo-se da segurança recém-adquirida. De forma curiosa, a felicidade ardia no seu íntimo irrequieto, seu interior apreensivo encontrava satisfação em sentir-se perdido nos mesmos olhos mais uma vez.
Os pés dela flutuavam pela noite viçosa enquanto seus próprios olhos cristalizavam o agradável sabor, o deleite de nadar pelo ar como quem desbrava o oceano. As bochechas coraram com o frescor de palavras soltas e despretensiosas, elevou-se aos céus a ideia que tinha de si mesma. Ria-se de como o quadro das últimas semanas haviam se pintado em sua frente: o céu e logo depois o inferno, as sutis loucuras, as distrações e deliciosamente outra vez, o céu. O céu. O céu. O céu. O sentimento risonho. As imensas estrelas cadentes pipocando em suas profundezas. As palavras delicadas. As palavras suaves.
Ela apreciou por dias a surpresa escondida nos minutos silenciosos, não conseguira decifrá-los, mas alguém – havia alguém! – o fez por ela. E só então, após a tortura da queda, pôde saborear e degustar a doce chegada ao topo.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Em Um Carrossel


Compus canções inteiras para os aromas exalados por tuas peles para que pudesse revisitar teus cheiros todas as vezes que me sentisse só e armazenei todas as fotos dos nossos risos nas madrugadas passadas em claro.
A minha visão turva não escondeu as memórias claras e espontâneas, nem mesmo a sensação das gotas gélidas de tempestade caindo sobre meu corpo exausto e satisfeito. Não tive sono nem por um segundo – se tal momento existiu, pairou no ar fragilmente e esvaiu-se pelo chão molhado com uma naturalidade imperceptível.
Tudo se encaixava facilmente, num minúsculo quebra-cabeças de meia dúzia de peças. Não havia um mundo a se preocupar, éramos crianças em um parque de diversões vazio, um pequeno grupo agitando-se contra a intensidade do tempo. Éramos Phoebe girando no seu carrossel com Holden a nos observar. Éramos Phoebe, e só agora me dou conta.

“Puxa, aí começou a chover pra burro. Um dilúvio, juro por Deus. (...) Mas nem liguei. Me senti feliz de repente, vendo a Phoebe passar e passar. Pra dizer a verdade, eu estava a ponto de chorar de tão feliz que me sentia. Sei lá por quê. É que ela estava tão bonita, do jeito que passava rodando e rodando, de casaco azul e tudo. Só a gente estando lá para ver.”
(O Apanhador no Campo de Centeio, pág. 204)

Eu confesso: meus pés ainda estão cansados e minha cabeça ainda dói de tanto girar, mas ah! Só estando lá para ver.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Sussurro


Estive em um redemoinho de farpas. No centro de uma praça pública ardendo em brasas, com mil pares de olhos vermelhos vidrados em minha direção.
Podia enxergar as línguas fervilhantes, ácidas, espirrando todos os meus fantasmas ao meu redor. Eu sabia que todos ali possuíam suas próprias mentiras deslavadas para jogar aos meus pés, todos fingindo saber os detalhes daquilo que nunca aconteceu.
O ácido saído das suas bocas espirrava em minha pele, corroendo meus membros e minha face com as palavras ferrenhas, queimando-me em brasa - morrendo aos poucos. Nem mesmo a chuva fina apagava as faíscas de fogo saltando de suas bocas cheias de odiosidade. Tudo o que a leve garoa produzia eram as marcas das pegadas feitas pelos pés da multidão feroz – pés pequenos, pés grandes, descalços ou calçados em mais fino material.
Eu não tinha medo, mas poderia rir de tanto nervoso, pois me inquietava o grito preso na garganta. Sabia que era o fim: verdades escondidas nunca vencem as mentiras que os outros decidem comprar pra si mesmos.
Esperei os segundos passarem lentamente, arrastando-se contra a dor do desgaste. No entanto, em meio à agonia das acusações, dos olhos vermelhos e do ácido fervilhante, ouvi um sussurro.
Sutil, quase imperceptível em meio à massa feroz e violenta. Não sei quem o disse e recordo-me o quão tolas eram as suas palavras. Lembro-me da sensação esquisitamente boa que me invadiu, como se nada daquilo fosse real – um simples pesadelo, em que todos eram o meu próprio inferno particular. E num segundo estúpido, por um sussurro tolo, de uma voz anônima - a única no lugar com palavras delicadas e doces - eu havia acordado e estava no céu.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Ruína


Eu perdi.
Perdi a solidez, estive confusa e abandonei um pouco de vida a cada esquina cruzada enquanto tu andavas com os passos firmes que eu nunca soube
dar.
Dá-me tristeza o não dizer, o não produzir, a ausência concreta que deixei vigorar e todas as outras falhas que tu nunca deixaste
acontecer.
Aconteceu: e eu sempre soube. Suspeitei e escondi-me na ignorância, agindo como alguém que não fosse digno de nota. Havia uma fagulha, uma faísca, uma centelha se agitando copiosamente em
desconfiança.
Desconfiei desde o início, mas o próprio início principiou
tarde.
Tarde da noite, tarde de horas, cedo de anos, escasso em palavras, duro de sorrisos, comum em
quietude.
Aquietou-se então a suspeita preocupante do sexto sentido quando observei a confirmação estampada em teu rosto. Assisti a lenta queda dos pedestais com as mãos atadas e a doçura presa nos
olhos.
Olhei para onde não devia. Sussurrei minúsculos mistérios a quem não soube conservá-los. Fui incerta e insignificante enquanto tu expelias poesia, graça, doçura e saber. Exalava todas as coisas que eu quase fui, quase sou, talvez
serei.
Serei um dia ao menos a metade do que tu és?

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Cacos


Tenho um gosto pelo tempo perdido
Pelo amargo das bocas
E o cristalino dos olhos
Os rascunhos mal feitos
Dos carros passando

Tenho um gosto pelo ambíguo
Um olhar em cima do muro
Para a indiferença ao meu redor
Como um conforto,
Sem repúdio

Aprecio as cores opacas
Nas pontas dos pés ou
Nas solas dos dedos
Assim como a dureza dos ossos
E a fraqueza das carnes

Um gosto pelo peculiar azul
Uns cabelos negros, retos e curtos
As sombras que passam
As luzes que ficam
As dores que marcam

Conheço o fracasso fadado
O doce sabor de um pódio
De palavras ditas no silêncio perturbador
De bocas não beijadas e
De abraços não dados

As migalhas do seu pão
Os nós nos dedos e a garganta inflamada
E os quadros abstratos da sua mão
E a expressão comprimida, no peito entalada:
eu as tenho

Guardei todas as flores murchas
Como recompensas em uma caixa
Ao redor dos cacos dos meus porta-retratos quebrados
E toda a sorte de coisas que nunca te dei
E todo o arrependimento que se pode amargar:
eu guardei.

sábado, 11 de setembro de 2010

Bexigas Murchas


Despedindo-se da infância perdida vestida com camiseta vermelha na tarde chuvosa, guardo a memória dos plásticos rasgados de fim de festa, dos doces sobrados e das garrafas com pouca bebida. Confundem minha concentração com suas piadas tortas os meus amigos queridos, trazem-me sorrisos que não me pertencem, que escondem meus desejos incertos não-revelados.
Reparei nas suas unhas, nas mãos, na curva dos ombros pelo reflexo da poça líquida esvaída no chão por algum frágil embriagado. Eram curtos e frágeis, mais fracos que minhas próprias forças de menina. Os amigos riam de suas próprias conversas – eu, alheia a tudo, absorta em sua imagem retorcida refletida no chão. Observara tudo e todas estas coisas tornaram-se ridículas, feias: os traços, os espaços, as axilas e as pálpebras caídas. Criou-se uma imagem grosseira.
Os cabelos quebradiços, a cor desbotada, a pele cicatrizada, as flores murchas, a roupa amassada, o doce enjoativo, o rosto suado, a grama poluída, a água suja, a voz rouca, a mente vazia, o abraço desgostoso, os olhos cegos, as mãos ásperas, a música de mau gosto, as bexigas estouradas, as velas apagadas, o cheiro ruim.
A ansiedade reprimida fora transformada em desânimo e tristeza em menos de meio minuto, por um aviso curto - uma simples observação. Mas na sola do seu sapato (quase um segredo!) uma frase sincera riscada com tinta vermelha me fez rir: “o amor fede”.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Delicadeza Insone


A aurora esmiuçava a escuridão noturna com seus braços finos de dama reluzente, desvairando ao céu uma claridade esparsa. Raro bem-estar em meio de semana traziam o deleite da manhã clara e o desejo de anunciar ao mundo a simplicidade exultante que não a permitiram dormir.
Durante a noite, a menina encontrara em sua cabeça palavras doces para disfarçar suas feridas abertas e o sangue seco em suas mãos. O próprio ar tornou-se mais fresco entre os lençóis, os elementos tomaram posse das cores e pôde respirar com convicção. Danou-se a química, a álgebra, a física e as ciências exatas, contrárias a tudo o que lhe cabia em satisfação. Traduzia indiretas. Remoia pensamentos.
“Gaste comigo as pontas dos teus dedos, os murmúrios da saliva, a fraqueza das mãos e a sujeira dos pés.” – repetia a si mesma, solitária, como quem diz preces no escuro do quarto.
Remoia a certeza de que quando não mais o visse, sairia para procurá-lo nas ruas vagas. Revirou-se a noite inteira, acesa durante a madrugada afora na cama outrora reconfortante. A mãe perguntara-lhe se o incômodo eram os sons da TV.
Antes fosse esse o incômodo.
Antes bastasse desligar os sons da TV.
Antes fosse possível desligar o coração (a verdadeira pedra no sapato) e continuar respirando
.

sábado, 28 de agosto de 2010

Dilema


Essa tristeza exata apresenta-me um conflito interno, eterno em seus detalhes e minúcias. O contentamento disputa espaço com a noção de que se ganhou pouco. Lutam entre si como dúvidas ferrenhas que desejam chamar atenção, porém, não é isso que disputam.
Desejam resolução e escolha, divagam entre a certeza de que se ganhou mais do que se esperava e a conclusão de que há alguém recebendo mais do que você. E agora, restou o quê? Entristecer-se de inveja? Sorrir por ter avançado?
Conheço todas as curvas envolvidas nesse processo. Eu já estive aqui antes. Reconheço a situação como um déjà vu ou como se visitasse um lugar que estive em meus primeiros anos de vida, onde as lembranças tornaram-se opacas, mas ainda estão lá. Revisito a confusão interna, aceitando-a como uma velha conhecida, lembrando-me de como é estar em um cômodo no qual se viveu enclausurado por anos a fio. Contentamento e desgraça, satisfação e melancolia. A indecisão insolente persegue-me pelas ruas, pelo silêncio, debruçada comigo sobre as mesas, sobre minhas próprias perturbações e no meio do nada.
Dói-me a certeza de que não guardo somente impressões – as incertezas e as memórias de alguns pares de horas, as coisas não ditas que me ocorrerão somente nos momentos inúteis me seguirão também. Como sombras fantasmagóricas de uma dúvida personificada.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Últimas Impressões do Céu


Restos de drogas em parque infantil
Rastros de doces nos fundos subúrbios
Rancor entalado no estômago
Enlatado
(e podre)

Gotas de poeira perdidas
Do pó ao chão
Num sopro
(de céu)

Regam a aldeia dos fantasmas,
Sombras pálidas
Mentes fechadas por cadeados
De sete chaves.

Um problema revelado em segredo
(de sussurro)
Como estalos no escuro.

A musa decepcionante
Recepcionando tolices
Com suas mãos perseguidoras
(do breu)

Da lua,
somente o brilho -
um pálido azul em
Céu que enegrece
Com suas nuvens
de cinza.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Antipatia


Rabisquei uma sátira em uma folha impressa para te fazer rir. Tão cheio de conseqüências, o mundo não me perdoou. Respondeu-me com um olhar amargo (de um sabor quase real), cheio de rancor e raiva claros como cristal. A feição suave de um rosto amigo em poucos minutos derreteu-se em mágoa e a hostilidade quase líquida atingiu-me em cheio – seria o fim da piedade?
Fartei-me das meiguices, expeli todo aquele ar afetuoso que me cansava aos montes. A rejeição de uma feição azeda bastou e por si só, destruiu-se, findou; o que fora firme e contido agora é flácido e desliza com desânimo. Destruiu minha graça, a piada mal-feita, meu gracejo singelo riscado neste canto de papel branco por um ciúme de inseto, de coisa pequena, de tola gente. Cortou-me pela raiz, decepou-me o sorriso, levou-me um amigo. Teria espantado meu riso, enterrando-o com esse rancor?

sábado, 7 de agosto de 2010

Rascunho


Levem o aço e o vinho à rainha da corte.
Ela ordena com graça e orgulho, autoridade e majestade. É triste.
Um bando de hipocrisias, sábado à noite: as bruxas saem para caçar.
A boca enregelada saboreia o gosto de sangue (seria uma sombra ou um personagem?)
O cheiro de cinzas me atrai (estão queimadas, prestes a abrasar ou enroladas em tabaco?)
Não tenho faro apurado, sou um inato, só reconheço aromas de frutas.
Enxergo quadrado em moldura azul – uma imagem em preto e branco.
Água quente para dores nos músculos, dancei e agora dói.
Eles sorriem e buscam impressionar, uma competição: qual é o cérebro mais prepotente?
Não me importo. A rainha deixou-me de aviso, deixou-me pedidos, deixou-me pavor.
Ela quer aço para queimar, aço para mutilar, ela tem raiva.
Quer vinho para saborear e degustar.
Para esconder o gosto de sangue, o gosto do corte, o gosto do amargo.
O anseio do ódio.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O Compositor de Telas


O garoto esquivava-se pelos cantos no escuro parcial, escorando-se em paredes de cores pálidas padrão. Inclinava sua coluna ampla tortamente para evitar ser visto, curvo como em uma falha (e muito mais bela) imitação do corcunda de Notre-Dame, um rato sorrateiro de aparência convidativa. O menino atravessava o corredor deserto, distante apenas alguns metros de qualquer presença humana, em direção à última porta, o fim da linha. O recinto, as paredes, seus próprios ouvidos e os dois hemisférios de seu cérebro pulsante ecoavam o som de um hino conhecido por qualquer um que houvesse nascido no país. Sentia-se hipócrita cantando-o e este era um dos motivos por ter dado meia-volta ao pôr os pés no primeiro centímetro do pátio escolar. Todas aquelas pessoas com a vida inteira pela frente vestindo uniformes das mesmas cores, com a mesma postura, louvando um símbolo em fila indiana faziam-no relembrar as imagens dos exércitos nacionalistas europeus dos livros de história. Então fugira, esquivara-se, dera as costas ao cinismo e escondera-se no corredor mal-iluminado.
O falso corcunda de olhos escuros escondia uma chave roubada em seu bolso esquerdo – lembrou-se por um instante, sem deixar de sorrir, da forma como conseguira o objeto – e tirou-a dali. Possuía dezesseis anos na existência, quatro promessas não cumpridas, dois roubos de pequeno porte para carregar a culpa e nenhum gosto por uma carreira tradicional, daquelas que nos são empurradas goela abaixo quando se freqüenta qualquer estabelecimento educativo clássico. Não desejava uma mesa presidencial em um escritório cinza, papéis burocráticos cheios de assinaturas, calculadoras febris por resultados fixos, conversas prontas de falsa simpatia ou aquela asfixia de se estar em um ambiente todo apático e costumeiro. Por isso roubara a chave no armário da sala treze, por isso perseguia a última porta do corredor com o passo sorrateiro, ignorando a presença de todos os seus conhecidos há alguns metros de distância, não podendo vê-lo enquanto entoavam o hino das hipocrisias.
Ele aproximou-se furtivo e girou a chave na fechadura. A porta do depósito se abriu.
Os olhos dele se enriqueceram em um brilho cinza ao contemplar o ambiente. Havia ali inúmeras prateleiras repletas com potes de tintas de todas as cores e composições, telas, cavaletes, pincéis de todos os tamanhos, murais e lápis. Os cantos superiores das paredes, no entanto, abrigavam teias de aranha de aparente desamparo e descaso. Há seis meses a professora que desfrutava daquele depósito fora demitida e a que a substituíra nem de perto o utilizava com alguma freqüência - o que era, de fato, um desperdício imperdoável e irremediável. Mas agora o garoto sorrateiro, não mais inclinado como um corcunda para esconder sua face, estava ali e o lugar – por tantos meses em um semi-abandono – parecia adquirir um novo ar de graça com a presença de um apreciador à sua altura.
Embrenhou-se pelos espaços entre as prateleiras de madeira empoeiradas, em busca dos exatos instrumentos que precisava: um par de pincéis de tamanhos opostos, três recipientes de tinta (um preto, um cinza e um amarelo) e a tela de tamanho médio. Sentou-se no canto vago mais próximo e a atmosfera do espaço, outrora opaca e desgostosa, iluminou-se como um ser vivo que acaba de digerir um alimento de delicioso sabor. O dom que brotava de cada dedo das mãos do garoto, atravessando a barreira dos pincéis e, por fim, alcançando seu devido lugar na tela parecia perfeito ali, como o filho pródigo retornando ao seu lugar de origem.
O menino retomava na memória a imagem que buscava, da garota desconhecida que avistara há poucas horas ao caminhar na direção da escola. Ele andava com a mochila apoiada em um dos ombros pela calçada um tanto vazia, e em meio a um descuido de seu olhar (até então direcionado para os próprios pés) observou os carros parados nos trinta segundos em que os faróis permaneciam vermelhos. Sua atenção foi instantaneamente concentrada na direção de uma garota na janela de um carro pequeno. Com cabelos pretos que recortavam seu rosto como em uma moldura cuidadosa, ela possuía um ar juvenil e absorto, com o dedo apoiado distraidamente em seus lábios. Os olhos eram negros e amendoados – uma escuridão só -, tão expressivos quanto palavras, divagando silenciosamente pelas luzes fluorescentes da cidade enquanto uma claridade amarelada aflorava-lhe pelas costas. Seu rosto contrastava essa luminosidade de um letreiro atrás do carro, dando-lhe um fulgor momentâneo. O vidro respingado de gotas de chuva dava-lhe uma aparência triste, quase desejosa. Foram trinta segundos em que a observara e este foi o tempo suficiente para que a registrasse na memória, cravada, desenhada permanentemente com objeto cortante: seu ar indagador, sua juventude e a firmeza de traços. O farol se abriu e ela se fora para sempre. Agora os mesmos contornos eram traçados por seus punhos, dedos e pincéis em uma tela branca. Pouco rica de detalhes, mas suficientemente corajosa em linhas modernas, simples, básicas e nem por isso menos honrosas ao rosto da menina, o quadro se compôs em poucas horas e restaurou-lhe a paz de espírito – certas coisas deveriam ser contadas tanto quanto deveriam ser pintadas. Para ele, era como se pedissem, quase implorassem para serem registradas com alguma fidelidade. Tais figuras o buscavam em tardes chuvosas e carros parados, em multidões frenéticas e no silêncio de um depósito e sempre as aceitava como quem aceita um abraço de alguém querido. Aceitava as imagens desses seres receosos e traduzia-as com as tintas, o punho e uma dose de sinceridade, todos aqueles personagens gritando por ele em seu silêncio rotineiro. E o garoto, em seu dom, gravava-os em tela como a garota entediada espiando as luzes de dentro do carro, implorando por traços, por cores, por um registro fidedigno - clamando por atenção.

domingo, 1 de agosto de 2010

Eventualidades


Ele veio ao meu encontro em uma sexta-feira calorenta em pleno inverno de julho. Eu o vi com seu ar duro e sério, com as mãos nos bolsos naquela pose pronta e abaixei os olhos. Estava dando um descanso à poesia por alguns dias, mas ao observar uma borboleta azul assustar-se comigo e voar do chão, restaurei-a de imediato. Durou pouco. Logo voltei a aprumar minha cabeça e a recordei-me de onde estava, mundo real. Aproximou-se e veio-me com o clichê habitual:
- Oi!
Estávamos em uma rua movimentada e um caminhão rústico ao meu lado exalava cheiros de comida em conserva. Eu não queria estar ali.
Trocamos palavras sobre conhecidos em comum. Eu estava de férias e algumas pessoas da escola nunca saem de férias porque o único assunto vital que possuem é esse: a escola. Eu estava com fones, mas podia escutar claramente o blá blá blá sobre alguém que estava indo embora da cidade. Dei-lhe um sorriso, disse algo que soava lamentoso pela pessoa que ia embora, joguei-lhe um até logo e fui embora.
"Que rua estranha”, pensei.
Segui em frente pela alameda das igrejas, supermercados e árvores. Alguns passos depois e enxerguei outro conhecido, mas dessa vez alguém que não via há muito tempo. Há anos. Era uma senhora, negra, de óculos, avó de alguém que eu conhecia. Não lembrei seu nome, talvez fosse Maria. Maria-dos-óculos, Maria-da-pele-negra, Maria-senhora.
Ela sorriu e perguntou-me:
- Qual é o seu nome?
Eu respondi-lhe. Sua boca abriu em uma expressão pasma – não havia me reconhecido de imediato, nem tampouco tinha certeza integral de que eu era a criança de bochechas salientes que ela conhecera quando eu nasci. Bom, as bochechas ainda estão salientes o suficiente para a senhora-Maria-de-alguma-coisa me reconhecer vagamente. Ela não acreditava em quanto havia crescido ao longo dos anos. Pareceu-me pequena com sua atarracada estatura de senhora idosa. Abracei-lhe e desejei-lhe bom dia, a pequena senhora sorriu. Eu adoro ver idosos sorrindo. Faz-me achar que a vida talvez não seja assim tão torta.

Pequena Observação


É aquilo que acontece quando enxerga-se pela primeira vez um estranho em um bar.
Você entra e não percebe, cumprimenta meia dúzia e não repara. Senta-se na cadeira que lhe estenderam, pede uma bebida e ambienta-se o quanto puder. O coração está seco, drenado pela saudade de qualquer coisa com fulgor, qualquer coisa que vibra; o gelo da bebida palpita em seus lábios, escorre em fraqueza e o órgão vítal permanece irredutível, intacto - acolho é somente memória.
E num breve momento sem intenção, em uma distração momentânea vira-se a cabeça e vê, pela primeira vez, o estranho. Muito mais ágil que você, já notara sua presença e te observa sorrateiramente. Você nota um par de olhos azuis, um cabelo loiro e um sorriso reto cheio de dentes. O coração respira e o pulmão palpita.
Ainda não há um fim de saudade ou acolhecimento familiar. Há apenas aquela linha invisível e imaginária criada pelo encontro de dois olhos verdes com dois olhos azuis. Ainda sente-se falta de outras pessoas que não estão ali, um vazio perturbador. Mas há uma nova pessoa - momentânea e um tanto distante - e que ainda assim representa algo de insubstituível.
De repente o estranho levanta-se em um último vislumbre em sua direção, dá-lhe as costas e vai embora. Então você recebe uma renovadora carga de energia no peito e sangue fluindo com intensidade; e percebe que, talvez, o coração não estivesse assim tão seco.
(21/07)

domingo, 18 de julho de 2010

Rubber Soul


Ela quer pares de sapato e eu só quero matar tempo assistindo filmes.
O tempo perdido que joguei fora abusando do tédio enquanto ela pensava no nome que queria nas suas etiquetas. E se tem algo que eu tenho certeza neste momento, uma única coisa que seja, é essa: não quero ter amigos que se importam com etiquetas, muito menos as minhas.
Engana-se quem pensa que há calmaria no tédio. Para mim, o tédio retumba um ódio vibrante em seu interior, disfarçado sob uma pele de aparência tranqüila. O enfado nada mais é que a ocultação de uma insatisfação descomunal que está sempre prestes a explodir. A inércia é um descaso momentâneo que espera o estouro de uma insatisfação. E de repente, bum.
De repente, cansa-se de estar cansado. Cansa-se das pessoas que se importam com etiquetas e sapatos, das pessoas desinteressantes, das músicas ruins e da obviedade. Encontro-me fatigada até as têmporas das pessoas de plástico, com seus sorrisos de silicone e cérebros de borracha. O superficial, que nunca foi suficiente, deixa de ser sequer significativo e tudo o que se quer é meia hora de uma conversa que valha a pena.
Então se lembra que é julho, o frio corta o seu rosto ao ar livre, a chuva não parece acolhedora e você está apático; tudo o que se pode fazer é esperar observando paredes brancas, telas vazias e janelas cinza. E eu não gostaria de esperar por nada, porque eu quero tudo isso - tão simples - agora. Todas as pessoas reais de volta: as que sangram e enlouquecem, mentem e são sinceras, pensam e riem, choram e não são inconvenientes ou sempre felizes. Porque pessoas reais são assim.