quinta-feira, 29 de abril de 2010

O Pequeno Apólogo do Tempo


Era uma vez certa máquina de escrever,destas simples,quase desinteressantes diante do olhar dos tempos modernos.Ah,o Tempo! - personagem de ares vilanescos desta história de longos anos.O leitor deve se perguntar por quê atribuo a coisa tão valiosa quanto o Tempo o papel de vilão.Pois bem,eis que este personagem é como faca de dois gumes.Ao passo que possuui o poder de curar mágoas e tirá-las do centro de nossas atenções,também leva consigo acontecimentos e fases maravilhosas que nunca trás de volta.E tal "lei" aplica-se diretamente àquela comum máquina de escrever citada no começo desta história.

Os anos bons vieram com sutileza e se foram com ferocidade para ela,designando-a agora à tarefa inútil de ser peça pouco admirável de museu.Possui uma cor viva de rubis,mas que,com o ambiente empoeirado do porão em que fora largada,se tornara ocre e sem graça.Possuía tanta mágoa em seu interior naquele dia!Uma dor sem fim por ter sido substituída pela modernidade,uma nostalgia ferrenha pelos bons tempos,no início do século passado,quando romances eram tecidos sobre suas teclas e histórias eram inventadas por meio dela.A agonia era tamanha,só restava-lhe gritar pelo causador de sua tristeza:

- Tempo!Oh,Tempo!Por quê fizeste isso comigo?Encara-me,venha até mim e justifique seus atos!

Houve uma pausa em que a máquina acreditou estar falando sozinha e no momento em que começaria a achar-se tola pela tentativa,escutou um barulho metálico.Tictac.Tictac.Um forte vento inundou o velho porão num redemoinho e,por fim,materializou-se.Tinha forma de homem,com rosto velho e sênil e usando roupas elegantes de majestade vil.

- Aqui estou,pois ouvi meu nome.O que queres?

- Quero saber o motivo de ter me abandonado.Foras tão cruel comigo.

- Eu? - soltou um riso de escárnio - Com tamanha esperteza ainda não percebestes que não fui eu quem fez isso?Ah,pobre escritora mecânica,és sim uma vítima,mas não deste senhor do Tempo.Não vês que ajudou a causar sua própria ruína por não fazer-se de útil?Não vês que,por outro lado,os homens e sua obsessão pelo que é novo são os que fazem isso contigo?É a realidade,minha cara.Os homens arruinam a si mesmos e,não contentes com isso,levam suas criações consigo.Sou apenas uma dádiva a eles.

E com essas palavras,o Tempo se foi.Muitos dizem que ele adquire uma forma para cada um.Dependendo da história de vida do ser que o chama,aparenta ser um velho ou uma criança,um anjo da sombra ou um demônio de luz,um Deus complacente ou ser rancoroso e vingativo.Pois quem faz o Tempo sou eu,é você e somos todos nós.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Hello,stranger

Tudo está de cabeça pra baixo eu simplesmente não posso negar. Sou o hipocentro dessa anomalia, a causa maior de uma modificação generalizada.
Onde estão meus heróis?Mortos por sua própria longa e intensa dose de amor.
Eles não podem me resgatar do lugar onde estou, mesmo sabendo que seriam ideais nesse momento – são meus heróis, pois com eles me identifico – refletem a mim como um espelho de duas faces. Ah, longínquo espelho!Por que os heróis, por mais próximos que nos pareçam, são sempre figuras tão borradas e tão instáveis que no fundo são somente heróis imaginários?Sempre serão imaginários; são nossa fuga para um mundo infantil que um dia tivemos de deixar pra trás, um resgate daquele ser frágil e inocente que um dia fomos, sem qualquer preocupação com nossa própria condição.
Arranquem-me desse penhasco profundo. Saltei dele sem intenção alguma, propósito ou justificativa elaborada – somente segui meus instintos de ser mortal. A única necessidade sentida agora é a de trancar-me em baú grandioso de sete chaves e deixar-me a sós por certo tempo. E só ir abrindo-me ao mundo aos poucos, revelando minha face até então desconhecida. Chave por chave, tempo por tempo.
Revolvo amores passados para curar as dores atuais. Removendo dor com dor, afinal qual é a maneira mais simples de combater um mal, senão utilizando suas próprias armas?Ao menos dores passadas agora são cicatrizes. Ao menos dores recentes um dia serão marcas e eu as usarei para remover outras feridas, como uma velha desculpa para uma falha recém cometida.
É preciso parar de sonhar. É preciso crescer. É preciso esquecer do que dizem - ninguém vive para esperar que os outros não falem de você ou inventem coisas ao seu respeito. É preciso esquecer dos heróis e dizer olá aos vilões – é contra eles que você luta, até que vençam e você dê seu último suspiro. É preciso olhar-se no espelho e se perguntar: você ama?
Eu espero que sim.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Prosa



Não me entendo e não entendo a ninguém.
Não sei por que a mulher parada no portão está ali. Não parece feliz. Por quê não se deixa levar por seus impulsos e sai a correr na chuva?Por quê não tenta fazer-se sorrir?
Um homem discute na esquina com uma garota de olhar intenso. Eu o conheço. Está de camisa xadrez. A garota possui olhos vibrantes e ela pronuncia palavras igualmente fortes, proporcionais a retidão que encontramos por trás do rosto juvenil. Amam-se ambos e brigam equitativamente. Não sei por que.
Já aceitei meus pecados, mas não quero revelá-los.
Sei que devo, mas não faço.
Amo, mas não conto.
Digo que minto, mas digo a verdade.
Eu não me entendo e passei a poupar os esforços. Se continuasse, a busca por respostas me levaria a uma paranóia cíclica e infindável. Há tantos opostos, em tantas pessoas – prefiro nem conhecê-los. Há os meus outros “eus” que não conheço, cada qual com seus medos e suas vitórias pessoais. Revezam-se como se revezam estações em um ano comum.
Meu personagem recente me põe medo e me parece o mais real de todos. É triste e denso, secreto e sincero. É mudo, fala com o olhar. Fala e não diz nada. Possui coisas escondidas demais para que se deixe revelar; é injusto para consigo mesmo. Esconde-se em sua particularidade única. Parece definitivo, como se viesse para ficar – e para sempre.
Espero que vá embora logo!Possuo um medo tal dessa faceta de minha personalidade que encontro-me em profundo pavor. Pavor do próprio espelho. Esse “eu” não ama com tranqüilidade. Esse “eu” não se anima com facilidade mórbida. É tão abrangente que acaba por não abranger nada – somente o silêncio. E grita este silêncio, cortando os ouvidos do surdo.
Talvez surdo devesse ser o mundo. Se não ouvíssemos ninguém, quem sabe ouviríamos mais a nós mesmos. E pudéssemos então nos entender, como crianças que entendem que, após o parto, nasceram para o mundo.

sábado, 10 de abril de 2010

Ontem



Seria como se o oxigênio não mais penetrasse em meus pulmões. Você nunca poderia saber – me faria sentir suja. Certas coisas não devem ser ditas. Lembranças. Muitas delas tornam-se meros espectros, quase mentiras inventadas pela memória opaca com o passar dos anos.
Quem me dera se os anos não passassem e seu sorriso permanecesse como um personagem real do meu mundo. Um dia irás embora depois de lágrimas vertidas entre abraços. Sentirei-me sozinha em uma dessas cidades suntuosas e cheias de gente, solitária na Avenida Paulista em meio à multidão incansável. Lembrar-me-ei de que para um abraço, bastava olhar ao lado e ver seu rosto. Lembrar-me-ei das canções dos dias ociosos e dos segredos que guardei para que continuássemos bem. Segredos sujos – permaneci calada.
Foi melhor permanecer em total ignorância. Ignorar seus pormenores sutis e graciosos para que ignorasse minhas falhas latentes e cruéis; eis aqui um paradoxo tão grave em si, mas que me pareceu tão leve ao vivenciá-lo. Para compensar, gostaria de oferecer algo e sei que não devo. Só tenho palavras para presentear. Palavras – outrora tão ricas – em nossos tempos significam nada mais que a evacuação do cérebro. O total eco do raciocínio, a falta de produtividade criativa da mente. Só isso, versos pobres e rimas fáceis. Merecíamos mais que isso: tu, eu e todos nós.
Merecíamos a verdade, mas a verdade trás conseqüências que muitos de nós não merecem. Merecíamos a mentira, pois todos os dias construímos nossa própria dose de ilusão, como uma droga pérfida e necessária ao organismo. Como o sangue. Sangue que não mais é orgânico. Sangue meticulosamente fabricado para levar insegurança e apatia a cada célula plástica de nossos corpos rotos. Sangues puros, reluzentemente limpos, escondendo nossas humanidades naturais. Somos deuses e somos monstros, somos anjos tortos e demônios de luz, escrevemos errado em linhas certas – criaturas perfeitas que se destroem ao se vender por pouco. Caia na real. É natural criaturas tão fantásticas possuírem segredos. Somos todos tão complexos; na maioria das vezes não entendo porque nos subestimamos por coisas tão fáceis.
Dentro do mundo há outros seis bilhões de pequenos Universos Pessoais. Os nossos se cruzaram em uma tarde suave de verão quando ainda éramos crianças e ali permanecerão entrelaçados até o dia em que se desvirtuarão. Depois de lágrimas vertidas entre abraços. Depois de segredos revelados com o olhar. Pois depois de separar-nos, não mais importarão os segredos sujos.
Estes serão só espectros do que um dia foi real.