sábado, 30 de outubro de 2010

Encaixotados


A tralha se acumulando nos lugares errados como montes de nada a atrapalhar-me; a tralha sem-nome; a tralha incessante jogada aos meus pés em caixas pardas e etiquetadas. A ternura arrumou suas malas e está de partida para outra casa que eu conheço, mas não possuo as chaves da porta de entrada.
Em algum canto oculto restou a beleza que tanto amei (e desperdicei, recompus e apreciei com os lábios um pouco abertos de admiração) decidida a esconder-se e então, partir, desbravar sabores que aqui não pode provar.
Essa beleza-ternura despede-se em partes, continuamente e aos poucos, caixas por caixas, após muita birra, excessos e sorrisos amarelos. Uma fina linha de poeira começa a formar-se sobre os seus objetos encaixotados que eu zelosamente cobri com lençóis para evitar o desgaste. E agora eu só digo adeus. Saiba que o que restou ainda paira no ar como a névoa branca fazendo cair a garoa matutina e que eu posso tocar tais restos com meus braços estendidos no ar. Porque se ouve o silêncio, enxerga-se o transparente, o nada também é uma marca. E a minha casa é um mar de lençóis.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Sem Mais


O nunca me persegue. Quebrei os ponteiros dos relógios, as ampulhetas empoeiradas e todos os possíveis marcadores de tempo. Escondi o sol com um manto negro em minhas janelas e, mesmo assim, abusei das portas abertas para que me trouxessem ventos arejados soprando sobre minha pele. Fujo do tempo, busco uma nova estação, uma temporada que murche as flores desabrochadas nas últimas semanas – que restem somente as suas pétalas e seu aroma ameno acalentando minha placidez interna.
Sinto uma harmonia insossa que já se faz presente como a ponta de uma imensa montanha de esquecimento. Um fio condutor de sossego na alma. Sei que o redemoinho, firme e farto, pode voltar a qualquer segundo em que meus olhos despercebidos voltarem a deixar-se turvos. Não acho que me importe se tal estonteamento retornar, já que agora, com deleitoso prazer, adquiri certo ar de firmeza. Uma solidez que não me cabe e resolveu dar as caras por esse ambiente cinza e opaco, uma espécie de rocha que resolveu dar-me as costas e deixar-se substituir por uma gargalhada extenuante aqui e acolá. Um sopro de alívio.
Pode contar-me sobre todos os teus detalhes e pormenores - agora quero, posso, devo, desejo e anseio ouvir. Relate-me. Degusta-me. Deleite-se. Descreva-me. A indiferença sutil tomou posse e mata lentamente esse ser vil e desprezível: o nunca, que insistiu em caçar-me ao longo de anos, adentrando por portas escancaradas. Admiravelmente dessa vez consegui um feito único e glorioso: ignorei todas as possibilidades perdidas que o nunca havia me extorquido. Levantei meu queixo e meu pescoço pendido, assistindo-o corroer-se. Excepcionalmente dessa vez quem extorquira fora eu, ao deixar o leite derramado escorrer sem piedade alguma. E não há mais prantos sobre o líquido esvaído.

domingo, 24 de outubro de 2010

Contaram-me:


Só os poetas fazem do amor, pausa e da dor, combustível. Só os poetas sabem que todas as ruas abarrotadas de gente são tristes, que todos os ônibus do mundo são tristes, e os postos de beira de estrada são tristes, e os vãos entre as poltronas: tristes.
Os poetas têm certeza, porém, que só as palavras são felizes, e os atores no palco é que são felizes, e os sabores postos nos lábios são felizes, tudo o que fala e tudo o que expressa: feliz. Eu, que mal conheço Clarice e Pessoa, que já escrevi aos prantos e ri de tragédias, que tropeço em qualquer esquina e falo baixo; eu, que tolamente finjo, que estupidamente ponho-me a amar tanto quanto a odiar, que descobri cedo que vim ao mundo muito tarde, que não durmo, eu que calo. Eu, que descobri na aurora do anteontem que o raro talvez não seja impossível e que trocaria todos os amanhãs por um único minuto jogada em certo lugar macio que não é o meu, como se de vento em popa navegasse em outra superfície de outro lugar em outro tempo que não conheci. A esquisito-caladinha e eventual insano-falante que troca a melancolia pelo êxtase, que chora sentada em poltronas (porque estas são cheias de pontos frágeis e melancólicos) e que ri no silêncio da pausa já foi a tempo avisada de todas as coisas e saberes que os poetas guardam para si. Alguém tratou de avisar, algum vento de outubro, algum frescor de frutas de verão, alguma voz escondida em um corredor extenso trouxe o aviso. Lembraram-me de que os poetas nascem com graça e que deles escorre um mel de beleza que não se vê a não ser que se seja também como eles, um brilho na ponta dos pés como um ramo de flores, um encanto posto nos braços tal quais abraços mornos. Um dote dos deuses, um doce segredo nobre e sublime: o dom das p-a-l-a-v-r-a-s.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Vertigem


Preciso dormir, preciso sossegar um pouquinho, preciso parar e me cansar de persistir, esquecer do que me cospem na cara, acalmar esse maldito espírito vagabundo e errante, desabar dessa nuvem desconfortante de pedra por onde andei deitada.
Deixe-me cair, porque estar nas alturas não é bom.
Deixe-me emergir, porque o fundo das águas não mais sorri para mim.
Deixe-me trocar minhas inquietações por músicas agressivas estourando meus tímpanos.
Deixe-me desabar lentamente pela última vez como uma montanha de plumas.
São duas, três, quatro da manhã, meu cérebro ferve e eu só gostaria de sentir essa realidade acordada, observar meu próprio desmoronamento acontecer pela última (?!) vez. Não mais interrogações ou dúvidas. Não mais hesitações ou miúdas ilusões. Não mais esperas ou expectativas. Tem de ser a última vez ou não me perdôo, não me aceito, me recuso a continuar, desisto de tudo, corro por meio mundo e não volto para cá.
Preciso aprender a olhar e não enxergar, conviver e não reparar, saber e não relembrar. De fato, todo esse tempo só me ensinou a fazer um drama como ninguém com o mesmo esforço de erguer uma pena (percebe?). Ar, ar, ar, ar! Eu só preciso de um pouco mais de ar. Um pouco mais de espaço que me permita um suspiro de alívio, um momento de frescor, um conforto soturno em pensamento. Um sorvete em um dia quente de verão, uma janela aberta em uma estufa trancada. Algo macio para poder tocar quando estender minhas mãos no redemoinho do desmaio. Algo novo.
Tal anseio não é bom, mas talvez um dia (ou daqui a pouco, quando eu finalmente suspirar de alívio) torne-se feliz.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Conselho Inútil


Vamos parar com esse jogo em que você finge que é o que diz enquanto eu finjo que acredito. Vamos parar! Posso te dar um espelho caso você não tenha um. Só não quero mais ter que simular que acredito, que espero, que me nego a ver. Está tudo tão claro. Ainda devo realmente ter esse terceiro olho que fareja e pressente. Cá estou, redigindo um conselho para ambos eu e você, esperando que seja o suficiente e que se dê conta de que agir como se fosse outra pessoa não leva a lugar algum. Este jogo sim é o meu: costurando com letras e consertando com palavras.
Acorde. Não posso ser seu antídoto enquanto eu mesma só conheço os venenos doces que coçam e ardem na garganta. Não precisa tentar me decifrar, não precisa me engolir, me suportar, respirar o mesmo ar que eu, não precisa me amar, desvendar meus por quês, decorar minhas músicas, adquirir minha apatia, acreditar que tudo o que escrevo é sobre alguém, conhecer meus amigos, notar o meu silêncio, secar as minhas lágrimas, me acompanhar até a porta de casa, saber dos meus finais de semana, quantas pessoas já amei, de quem tenho ódio, se prefiro o frio ao calor, quantos anos eu tenho, se prefiro Lennon, George ou Ringo, se gosto de fotografia, quais filmes assisti semana passada. Poupe seu tempo, sua saliva, seus dedos, suas pernas, seu esforço mental. Se interesse pelo pouco que sabe, pela sombra que me persegue, pelas coisas que estão estampadas e não há como negar, pela aparência tola e nada mais. Não se infiltre aqui dentro – ou infiltre-se, se estiver disposto! – mas já aviso: vai se perder tanto quanto eu.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Fighting For Peace


Preciso criar qualquer coisa de valor. Qualquer coisa que me permita transformar meus dedos e lápis em gatilhos de armas e que eu possa dispará-los, matando esse ponto agonizante. Matar essas possibilidades que insisto em não chamar de fatos e que continuam permeando meu interior distraído, embora toda a aflição tenha saído do peito e fluído para o cérebro com certa facilidade. É isso, não sinto mais – somente raciocino.
É isso mesmo? Este é o ilustre Senhor Conformismo? Ele, que fez o que sinto sair do peito e instalar-se no cérebro. Do sentir para o pensar, converti o “isso dói” em um simples “penso nisso”. A angústia é menor.
Contento-me com estas migalhas, mas única e exclusivamente porque eu tenho um pão inteiro escondido em meus bolsos.
(persisto adiando o corte final)
(melhorias em meu estado de espírito!)
(estoumelhor, estou me-lhor, estou-melhor, estou).
Estou. Criando. Re-criando. A. Mim. Sendo salva pelos rabiscos que fizeram em meus cadernos, pelos poemas anotados em folhas brancas e pelas expectativas que depositaram sobre meus esforços.
(cansei dos cantos tímidos e sorrateiros, eu só quero estar no centro, ei ei ei eu estou aqui, eu estou-)
Desvendando meus próprios escritos, achando algum sentido para meu subconsciente em uma fuga desesperada de tudo o que é real. Guerreando por sossego.
(quero o sossego do não sentir, misturado à inquietação de ser essencial em alguma coisa até que eu perceba que tudo isso não passaram de brutas tentativas desesperadas de ficar em paz).

domingo, 17 de outubro de 2010

Pensamentos Desconexos


Nem tudo sou eu e nem tudo magoa tanto e principalmente, nem tudo é suficiente por aqui. Sempre há sede e sempre há garra, unhas e dentes e outras pessoas se escondendo nos lugares que eu não conheço fazendo coisas que eu não consigo ou não posso fazer.
Descobri ao menos que tenho um faro apurado para certas coisas que não vem ao caso e que não tem me trazido nada além de uma ou outra decepção e pequenos instantes de valor com certo esforço. Descobri que só estou presa em um tempo errado com uma aparência errada e que por isso tenho meus braços atados.
Só pude pular em meio à massa e esquecer por alguns momentos das coisas que me faltam lembrando-me ansiadamente das coisas que ganhei e como nada faz sentido quando os seus ouvidos estão zumbindo com o som de guitarras e as suas pernas doloridas e como é boa a sensação de se sentar após isso em um canto confortável de uma sala com um bom tanto de gente interessante.
Só tinha voz para uma fala contraditória que dizia “deixe-me neste lugar que é o melhor do mundo e tire-me deste espaço que é o que mais me dói” sabendo que nem doía tanto assim e lembrando que havia um motivo bom para se estar ali, que deveria apreciar isso com um sorriso ou outro, um cansaço confortável nos meus pés descalços, principalmente porque eu sempre quis aquele lugar e que realmente era o melhor lugar do mundo naquele instante frágil e agradável.
Quis que o mundo fosse a Pangeia outra vez e que eu agüentasse andar muito mais do que agüento pular e me silenciar (aliás, sei pular tanto quanto me calar e me calo tanto que até me incomoda), poder falar todas as coisas absurdas que nunca passam pela minha memória distraída, ser capaz de viver como várias pessoas diferentes por alguns dias - dos sujeitos tolos aos geniais - e saber ser tudo aquilo que ainda não aprendi a ser porque bem, eu só nasci ontem e eu ainda não aprendi direito o que é de verdade esse negócio chamado vida.
PS.: Dei uma de Jack Kerouac e fingi me esquecer o que são pausas decentes.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Fragmentos de um Remetente Desconhecido


Todas as quartas-feiras, o homenzinho de roupas azuis e amarelas tem de passar em frente à minha casa e despejar encomendas, cartas e telegramas. Há algumas semanas passei a receber uns pacotes encapados em papel azul nas tardes de quarta-feira, pontualmente ás quinze horas. Aguardo em meu portão a chegada do carteiro. Espero como um cão aguardando um afago e lentamente me desperto enquanto observo os ponteiros do relógio chegarem à hora ansiada.
Na primeira semana, estranhei a tal “encomenda”. Não havia nome de remetente, apenas o destinatário. Meu nome reluzia em tinta preta em meio a um vazio papel branco. Abri-o cuidadosamente.
A primeira coisa que me enviou foi uma sombra. Algo negro saíra de dentro do pacote, uma pequena amostra de você. Essa sombra materializou uma imagem sua em meu cérebro por alguns poucos segundos: lá estava, entre a multidão frenética em um mês de maio calorento, ressaltando aos meus olhos devido a sua semelhança com alguém que eu venerava já há muito tempo e também devido a sua camiseta de cores contrastantes. Depois de segundos, a imagem desaparecera em brumas brancas. Senti-me um tanto perdida após esse vago acontecimento, pois perguntas brotavam em mim tal qual uma dúvida insistente sem sentido algum. E mais extraordinário ainda foi conseguir me sentir solitária quando aquela sombra repleta de vida decidiu esvanecer-se.
Na segunda semana não esperei, mas recebi um pacote azul idêntico da mesma forma. Trazia reflexões tuas a respeito de si mesmo. Todas as falhas, todas as coisas agradáveis e as impressões íntimas rabiscadas em uma letra corrida, com tinta preta borrada em um ou dois cantos, revelando certo descuido e muita pressa. Teve o cuidado de me enviar suas opiniões mais célebres, as mais absurdas e as mais baixas a respeito do seu próprio ser fazendo-me rir, soluçar, enraivecer e até mesmo avermelhar-se com as bobas anotações.
Na terceira semana, recebi teu aroma. A ansiedade em poder senti-lo de forma mais intensa causou-me um fino corte nos dedos quando fui rasgar o embrulho azul. O aroma era exatamente aquele que se é capaz de sentir entre os ombros e a nuca, guardado cuidadosamente em um vidro pequeno e sinuoso. Ora, desta vez havia sido um tanto covardia.
Nas semanas seguintes, todas as quartas-feiras ás quinze horas eu parava em meu portão, aguardando. Recebi sua voz um tanto febril em um gravador antigo. Recebi partes da tua pele morna um tanto machucada. Recebi uma miúda faísca dos seus olhos. Recebi algumas lágrimas suas, alguns lamentos. E também alguns risos estridentes, umas gargalhadas insanas. E tem sido assim durante todas essas semanas, desde aquele maio calorento: fragmentos de você chegam até mim pela caixa de correio.
Mandou-me tudo, todo o seu mundo, mas o coração – ah, o coração – esse você não quis mandar.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Ervas Daninhas


Cada vez tenho mais certeza de que sou uma masoquista incurável. Quando me encaminhei para retirar as ervas daninhas de meu jardim, percebi com sensata surpresa que elas possuíam certo encanto. Diga-me se não é de certa graça essa significativa forma de vida que insiste em crescer em meio as flores mais belas? Não é de se admirar que esse incômodo que deveria ser tão insignificante persevera em continuar onde está?
Não acha que a existência dessas plantas invasoras faz com que as flores tentem ser mais esplêndidas e viçosas, em uma espécie de competição saudável? Não vê que eu não consigo arrancá-las, pois são elas que me permitem ter um variado jardim? Teria visto você em mim a mesma beleza excêntrica que vejo nesse estúpido verde que insiste em sobreviver? Chega a ser bruta a forma como elas continuam a melhorar meus dias, com a simples confiança de sua existência em meu jardim.
Vida a longa às ervas daninhas! (é, eu realmente devo gostar de padecer).

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Carta a Quem Partiu


Lembro-me de que costumava ir à sua casa todas as semanas, fizesse chuva ou sol, ensopada de suor após andar tamanha distância.
Eu tento não amar mais ninguém, cara amiga. Partiram-me ao meio, e é estranho que você não saiba que “no meu mundo / um troço qualquer morreu / num corte lento e profundo”. É tão estranho não poder te contar, menina, é tão estranho. Fico pensando agora como ou com quem ocupa as tardes claras que nos presenteiam os últimos dias, se sente falta das minhas graças infames e o que diria se soubesse das minhas dores. Acabaríamos rindo disso, mas você foi embora e divido minhas cruéis decepções com a escuridão do meu próprio quarto solitário. Volte e vamos fazer planos mais uma vez, ajude-me a sair deste lugar tenebroso. Será que ainda teria paciência para me ouvir? A inutilidade nos separou, levou este pedaço de mim e ninguém me conhece direito neste caco de mundo que me sobrou. Perguntam por que pareço triste e eu sei que você odiava todo esse tipo de pergunta irritante assim como eu, porque não parecemos tristes – nós nascemos assim.
Meti-me numa história esquisita que só você entenderia ou então faria sarcasmos com a minha cara e com minha tamanha estupidez. Deus, como sou estúpida!, Sou tão estúpida!, Sou tão criança!
Você entenderia essa minha mania tola de parecer sempre madura demais, sempre querendo tudo o que é maduro demais para quem carrega tamanha pouca idade e essa minha mania de chorar pelos cantos nos banheiros trancados e de rir na cara dos outros do que não tem graça para ninguém além de mim mesma. Agora, decoro e releio textos sem que você dê suas opiniões, estou sem os julgamentos dos livros que você lê e das viagens que faz.
Estaríamos zombando dos nossos próprios corações partidos ou simplesmente trocando silêncios sobre canecas de chá ou palavras um pouco amargas que para os outros soariam como brigas, mas que para nós soavam como música.
Aliás, você se lembra das músicas? Ainda ouço todas elas e acho que as ouvirei eternamente, até o meu leito final, menina. Até os últimos dias os sons das guitarras, e as canções delicadas, os gritos ferozes e as letras de almas tortas como as nossas. E mais uma vez: como sou tola! Rabiscando esse projeto de carta para alguém que não mais se importa...

Uma Mentira Branca


Estive à procura dessas pequenas satisfações escondidas nos dias de coisas tolas, essas pequenas mentiras brancas (mentiras por um bem maior!) que facilitam a entrada de ar nos pulmões. Concentro-me na pausa, no espaço entre o diafragma e as cordas vocais. Estou viva. Este meu pequeno prazer é elástico, vibra como fios soltos de nylon, hesitando entre o simples contentamento e a certeza de que somente respirar não é o suficiente.
Sei que os filmes parecem retratar todo esse pequeno dilema – inspirar pelo nariz e expirar pela boca ou simplesmente parar. Simplesmente ter a certeza de que se pode pular de um alto penhasco, bater a cabeça, deixar-se eternamente flutuar no fundo das águas. E quem sabe um dia voltar à superfície como outra vida. Voltaria homem? Voltaria escassa de encantos? Rude? Ignorante? Ou bela de arder os olhos?
Talvez nem voltasse. Talvez essa coisa que chamam de “minha alma” resolvesse aproveitar a fina e final sensação de liberdade que nunca soubemos degustar enquanto seres de carne e osso.
Aliás, teria eu mesmo carne e ossos? Sinto-me pó. E só. E solta. De tão livre, presa em correntes de vento gelado adentrando pela porta. Acho impressionante a quantidade de palavras que já foram gastas por mim e por outros tantos em busca de um pouco mais de carne e ossos e menos desgosto. Drummond suportou o mundo nas costas. E o escreveu. Rachel e sua tangerine-girl iludiram-se com os bilhetes caídos do céu. E escreveu. Vinicius amou e des-amou amou e separou amou amou amou e escreveu. Todos eles.
Só não me leve tão a sério - tenho um nariz vermelho e umas bochechas engraçadas, sempre prontas a rir dos egos inflamados e das próprias falhas da vida (ou por que não, da sobrevivência?). Deixe-me rir (rir até chorar, ou somente isso: chorar) do meu próprio descontentamento e então voltar a agradecer, outra vez, por puramente respirar.

sábado, 9 de outubro de 2010

Encolhida


Tiro meus óculos para não enxergar as belezas que não são minhas e evitar desejá-las, prendo os cabelos para não ser percebida. Sou invisível na rua vazia e agradeço aos céus por parecer um fantasma no caminho escuro, pálida em desespero escondido, imperceptível. Alguém escrevera em tinta branca nos portões de um galpão abandonado um pedido de casamento. Eu não sorri ao lê-lo, coisa que faria com facilidade se os tempos não fossem de coração seco.
Tudo parecia tão errado, cada canto tão sujo, cada passo machucava minhas pernas, cada minúscula célula do meu corpo amortecia com o frio intenso. Sentia-me fraca.
Ignorei as crianças brincando na garagem com seus avós. Ignorei o casal conversando na porta da casa. Os seus risos, as suas faces risonhas, as suas mãos grudadas – fingi não vê-los. Havia coisas presas em mim, palavras ardentes presas em meus lábios, sangrando silenciosamente pela minha garganta. Gostaria de poder queimar, destruir as paredes pichadas com frases amáveis, cessar os sorrisos tolos, as mãos espalmadas. Por que vocês riem? Por que estão brincando? O mundo está sangrando aqui fora, nessas calçadas sombrias, rasgando pelos cantos medrosos com seus amores caídos, com seus sentimentos de chumbo, seus sorrisos de lata.
Não me dê forças, eu não quero ver teus encantos, eu não espero lembrar da tua voz quando o dia amanhecer. Quero fazer-te insignificante – como eu fui – e permanecer sorrateira, tímida, sólida. Mais ou menos inteira, o mais viva possível.
Por isso, não me conte: eu não quero saber. Eu não estou aqui.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Êxito


Para ela, parecia tão mais fácil mexer os dedos dos pés e das mãos a partir do momento em que não mais guardou pretensão alguma. Havia rasgado todas as fotos, vertido todas as lágrimas presas na garganta e limpado sua mente de todas as memórias doces. Havia expelido por inteiro suas inquietações, esquecera-se, acabou-se.
No entanto, as suas tentativas (até então bem-sucedidas) de recomeço foram por água abaixo outra vez. Pôde sentir seus órgãos internos transformando-se em líquido instantaneamente, esvaindo-se da segurança recém-adquirida. De forma curiosa, a felicidade ardia no seu íntimo irrequieto, seu interior apreensivo encontrava satisfação em sentir-se perdido nos mesmos olhos mais uma vez.
Os pés dela flutuavam pela noite viçosa enquanto seus próprios olhos cristalizavam o agradável sabor, o deleite de nadar pelo ar como quem desbrava o oceano. As bochechas coraram com o frescor de palavras soltas e despretensiosas, elevou-se aos céus a ideia que tinha de si mesma. Ria-se de como o quadro das últimas semanas haviam se pintado em sua frente: o céu e logo depois o inferno, as sutis loucuras, as distrações e deliciosamente outra vez, o céu. O céu. O céu. O céu. O sentimento risonho. As imensas estrelas cadentes pipocando em suas profundezas. As palavras delicadas. As palavras suaves.
Ela apreciou por dias a surpresa escondida nos minutos silenciosos, não conseguira decifrá-los, mas alguém – havia alguém! – o fez por ela. E só então, após a tortura da queda, pôde saborear e degustar a doce chegada ao topo.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Em Um Carrossel


Compus canções inteiras para os aromas exalados por tuas peles para que pudesse revisitar teus cheiros todas as vezes que me sentisse só e armazenei todas as fotos dos nossos risos nas madrugadas passadas em claro.
A minha visão turva não escondeu as memórias claras e espontâneas, nem mesmo a sensação das gotas gélidas de tempestade caindo sobre meu corpo exausto e satisfeito. Não tive sono nem por um segundo – se tal momento existiu, pairou no ar fragilmente e esvaiu-se pelo chão molhado com uma naturalidade imperceptível.
Tudo se encaixava facilmente, num minúsculo quebra-cabeças de meia dúzia de peças. Não havia um mundo a se preocupar, éramos crianças em um parque de diversões vazio, um pequeno grupo agitando-se contra a intensidade do tempo. Éramos Phoebe girando no seu carrossel com Holden a nos observar. Éramos Phoebe, e só agora me dou conta.

“Puxa, aí começou a chover pra burro. Um dilúvio, juro por Deus. (...) Mas nem liguei. Me senti feliz de repente, vendo a Phoebe passar e passar. Pra dizer a verdade, eu estava a ponto de chorar de tão feliz que me sentia. Sei lá por quê. É que ela estava tão bonita, do jeito que passava rodando e rodando, de casaco azul e tudo. Só a gente estando lá para ver.”
(O Apanhador no Campo de Centeio, pág. 204)

Eu confesso: meus pés ainda estão cansados e minha cabeça ainda dói de tanto girar, mas ah! Só estando lá para ver.