quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Tudo o Que Tenho a Dizer


Faço preces para que você se lembre de mim. Eu peço por favor por favor por favor para que você não desapareça porque de repente me bateu esse pavor insano de que você sumisse ou virasse poeira no ar de janeiro próximo. Um pânico repentino de que a sua vida acabasse e eu continuasse aqui, sentada ao lado do seu assento vazio, tomada de lembranças do que poderia ter acontecido.
Eu rezo para religião nenhuma, querendo que você me entenda e que por favor por favor por favor continue lembrando que eu existo porque você sabe fazer todas as coisas que eu não consigo e faz parecer normal quando não vejo problemas aonde tem.
Vê se não me erra, se me liga, não esqueça que me lembro de tudo, que não faço nada direito sem essa sua opinião torta, me responde os emails ou essa coisa toda de comunicação contemporânea. Eu me movo aos trancos, sem tripé, sem jeito, nem nexo ou graça - eu nunca aprendi a caminhar quando se tem os pés meio grandes.
Não sou nada daquilo (aquela simpatia toda, aquela doçura toda) e você sabe, não sou nada daquilo e você aceita, não sou nada daquilo e por favor por favor por favor continue sabendo disso e zombando das minhas burradas patéticas.
Os meus espinhos não estão gastos, os meus olhos já estão vermelhos e eu não tenho mais prazer ou urgência em ser quem eu costumava fingir que era. Preciso te contar (preciso mesmo te contar) que eu não fiz progresso algum com essa mudança, que eu não melhoro, eu não evoluo, eu não ando. Preciso mesmo te falar que não tenho nada a esconder, nem as coisas dos corredores, nem as coisas das chuvas, nem as das salas, nem as dos cinemas, nem as coisas de nenhum outro lugar que nunca te contei, mas de alguma forma espantosamente cósmica você sabe e sempre me manda um sopro de alívio nos exatos períodos malditos. Por favor por favor por favor continue adivinhando os meus períodos malditos, as minhas fases sombrias, os meus dias condenados, continue os salvando, continue comigo. Continue em infinito, em looping, pro universo todo, sem fim – não crie um fim, não não não. Não termine nunca de existir. Não se canse daqui (o seu ‘aqui’ é belo e intenso demais). Os términos estão todos nas minhas costas, deixe-os comigo, são todos meus: guardados junto com as coisas que eu escrevo por não saber falar e os meus repentinos pontos finais.

PS.:“eu vou ficar te esperando / bebendo coca cola / esperando você sair / esperando você chegar”.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Renée


Eu fico aqui, com os meus dois pés afundados na terra (porque, querida, por essas bandas não neva nunca - você sabe - e o único lugar que temos para afundar nossos pés limpos é a terra) pensando em como você infectou minhas vias respiratórias com o seu vestido florido. Anotei em um guardanapo de papel todas as coisas que me remetiam a você enquanto sentava-se na mesa ao lado: seda, pele, pétala, morango, linho, fita de cetim, cabelos brilhantes. Tudo o que é macio.
Queria saber de qual movie star dos anos 50 você roubou esse teu ar blasé e de qual roqueira durona você furtou essa faísca de perversidade do fundo dos teus olhos. Olhos estes virados com repulsa em minha direção: a confirmação do meu fascínio unilateral.
Eu, um sujeito provinciano e despreocupado, que nunca encasqueta com nada, encasquetei com o teu jeito elegante de sentar que só as mulheres belas sabem como fazer, ou a forma como caminha - uma flor noturna estonteante, flutua, flutua.
Te observo sem dó, sem mágoa nem ofensa sem que você perceba os olhos deste sujeito distraído (mas não estúpido) repousando a todo momento na tua magreza. Tem um sabor de frutas fluindo ao seu redor junto com o aroma do ar que não sei explicar (tão, tão distraído), que não sei reparar nem descrever.
De quem é que herdou estes traços sutis e estes braços finos, essa delicadeza feroz, essa meiga melancolia nos cantos do rosto? Eu queria saber, queria e quero saber, eu sempre quis. De que artista teria sido musa (porque se ainda não o foi, os artistas são todos tolos - ou cegos)? Você, sempre aquela visão fugídia, aquele encanto efêmero cruzando comigo mês ou outro em algum lugar abarrotado de gente, com dois ou três amigos/amores ao seu encalço - nunca sozinhos, estes teus olhos grandes e tristes - roubando minha acanhada atenção.
Os meus pés afundados na terra lentamente amolecem. Os meus pés frágeis cedem, desistem. Qual será o sedativo inebriante que você passa nos pulsos e atrás das orelhas e sai por aí dizendo que é perfume? Boa-noite-cinderela? Boa noite, Cinderela. Boa noite.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Cru


O ambiente parecia observar uma gota de suor escorrer entre minhas pálpebras, finas o suficiente para deixar visíveis as pequenas veias ao redor dos olhos. Eu fingia que o sofá assistia à TV da sala, enquanto – como uma criança perdida em outra dimensão – observava o reflexo de uma cadeira no chão absurdamente limpo. Entretida. O chão estupendamente higiênico, refletindo a imagem daquela cadeira preta e tosca, me fazia sentir imunda, deitada sobre ele com a nuca transpirando no calor importuno. Eu costumava odiar o calor tanto quanto o odeio agora e o piso era o único lugar suficientemente frio para me fazer suportá-lo. Lavado e cristalino. Mais alinhado do que eu, o próprio chão! Dane-se – eu pensava. Era domingo. E não há nada para se fazer além de afundar-se (em filmes ou comida, talvez em piscinas ou em tédio, qualquer coisa que enlace ao seu humor). De qualquer forma, eu sabia que não adiantava lutar contra o mal da pré-segunda: tudo é cru aos domingos.
Neste dia, o ar é falsamente leve e o próprio sol, ainda que tolamente brilhante, é preguiçoso. Tenho certeza: se o sol fosse boi ou porco, seria servido cru (ou semi), sangrando, rechonchudo e gorduroso. Como as carnes que essa gente costuma assar aos domingos. Essa carne lenta e vermelha, ardente.
Acabei com muitas formigas aquela tarde – aqueles seres minúsculos e pretos, que pareciam ter a incrível e irritante habilidade de se multiplicar – para que não sujassem o chão. O meu chão minuciosamente brilhante, quase um espelho, livrando com sua frieza a minha carne das brasas. A minha pele, aquele órgão pálido e enorme, com duas feridas abertas nos pés que insistiam em não cicatrizar, mais ou menos refrescadas por um enorme e gélido pavimento de granito. Aquelas feridas vermelhas, pouco profundas, mas nem por isso menos intrigantes, repousadas no topo dos meus dois pés. Vermelho no branco. Recortadas pelo ar quente pouco denso e abafado.
A minha respiração era lenta e nem por isso calma, parecendo ela mesma gerar a sua dose de frescor momentâneo. Deitada ali, como uma carcaça, um animal abatido em vermelho, uma estrutura de ossos, sangue, pele e calor. O meu corpo estendido – a carne crua dos domingos.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Ela Que Não Sabia


Ela se escondia entre aglomerados de lascas de madeira durante o dia por ter medo da claridade do sol. Ela não era capaz de limpar a sua própria imundice e prestar atenção em nada. Havia deixado pilhas de papéis com todos os seus escritos debaixo de uma escada para o cara que ela supostamente amava. Infectava-o com uma falsa sensação de liberdade comprada; com seus olhos derretidos em sarcasmo e poder, ela deixava-o livre sabendo que ele não iria a lugar algum enquanto ela ainda possuísse aquele sorriso irônico estampado no rosto. Era tudo o que sabia fazer: deboches e textos. As suas manhãs de domingo e as tardes de segunda eram sempre dor-de-cabeça porque os sábados à noite a embebedavam. Ela matava baratas para se sentir limpa. O cheiro de menta dos carros quase vazios a faziam querer fugir para um bar que possuísse assentos almofadados e confortáveis ao lado de um ou dois amigos que tinha em mente.
A garota lembrava que o cara que deveria amar cheirava a palco por alguma razão absurda e desconhecida, andava muito reto e sério – coisa que irritava seus nervos e fazia com que ela estivesse a todo o momento em posição de ataque (como se pedisse uma atitude: lute ou conserte-se). Ela raspava a cera de velas de aniversários passados quando estava nervosa - como um ratinho roedor de queijos - destruindo toda a matéria que pudesse desintegrar e estragar. Vestia-se com as roupas dele e não sabia limpar as próprias unhas porque estavam sempre curtas demais para que se importasse e longas o suficiente para que arranhasse os próprios joelhos avermelhados. Sabia cuspir, xingar e gemer, mas parecia mais um garoto assustado trancafiado em um quarto cheio de barulhos estranhos e uivos sombrios. Gostava de segurar as mãos das poucas pessoas que amava porque isso a fazia sentir viva e tolamente feliz, procurava por parte da sua identidade esquecida em qualquer pedaço de arte que conseguisse encontrar para que se sentisse alimentada. Ela não soluçava na frente dos outros porque se sentia nua. Ela não queria se sentir nua porque precisava ser aceita. Ela precisava ser aceita porque sabia fazer acertos. E ela só acertava quando aprendia a soluçar na frente dos outros.
Essa tal moça sabia dançar com os pés descalços até que estes começassem a descamar nas solas, tirava fotos da neblina matinal para que não sentisse saudade do inverno acolhedor e só usava tênis sujos que a deixavam com a estatura baixa e atarracada. Cometia erros na vida como se tropeçasse em pedras e jamais falhava quando se tratava de análises e críticas. Ela escondia-se debaixo de cobertores felpudos e canecas de café para que o seu suposto amado não a encontrasse e para que aprendesse a sobreviver com o ar rarefeito e respirar em lugares sem ventilação. Ela se contradizia ao se destruir por não saber desejar as coisas, fazia tudo (absolutamente tudo) para que sentisse os efeitos dos seus próprios atos e para que, somente então, pudesse ser humana.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Sobre Pessoas


É dezembro.
É dezembro e eu gostaria de poder escrever um conto sobre olhos e bocas vermelhas, e sobre quase-beijos roubados no corredor.
Gostaria de derreter as tardes passadas na rua, nos livros, no topo de escadas em palavras que traduzissem a existência – mas não posso. Não há caos para me fazer acordar. A atmosfera é leve e tênue, exceto por essa incômoda sensação de estar sendo vigiada por um cão de guarda a todo o momento. A leveza dos dias é quase palpável e se estende das minhas mãos aos sorrisos de pessoas dançantes ao meu redor. Saldo? Um amontoado do sabor salgado de lágrimas de riso extremo escorrendo dos olhos.
Minhas bochechas ainda coram com a brisa gélida (mais uma bobagem pessoal) e me lembram das despedidas que não quero ter de fazer. Todas as pessoas certas duram pouco - nada mais que um sopro - e as erradas permanecem tempo enorme que parece vida-toda: sempre com as suas asneiras descartáveis.
Caso possuísse algum dom alquimista que me proporcionasse o derretimento do tempo e que me permitisse fundir as horas em líquido abundante, guardaria todas as horas exultantes (e as terríveis) em pequenos potes de vidro. Conservaria o tempo e beberia dele até a última gota. Escorreriam pela minha garganta, todos: a gente que me sorri e a que me ensurdece com gritos, a gente que me perturba e a que me alenta sem nem saber que o faz. Deslizariam por minhas entranhas tomadas de nostalgia e desespero velado, como se por elas eu tivesse subitamente me apaixonado. As pessoas todas, sem distinção de raça sexo idade ou gostos, guardadas nas lembranças desse tempo convertido em líquido, iriam embebedar-me a mente com suas personalidades diversas (tão opostas, tão extraordinárias, tão podres). As suas presenças se perpetuariam em minhas vísceras pegajosas e eu as cuidaria como uma mãe amando o feto em seu útero. Eu amaria todas essas pessoas, como se fossem minhas.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Lovers In 68


Os amantes franceses passeavam pela Champs-Élysées exalando o seu ar sofisticado durante o verão de 68. Os rapazes gostavam de ouvir a vendedora de jornais, com sua voz doce e suave, gritar pelo seu sustento: “New York Herald Tribune! New York Herald Tribune!”. As garotas usavam vestidos de cetim e boinas tortas na cabeça, transformando as ruas em cinzeiros e os garotos em cães babões. Tanto eles quanto elas assinavam poemas como petições e petições como poemas, discutindo sobre Hendrix ou Clapton, Chaplin ou Godard, Beatles ou Beatles, sobre lutar ou sobre calar. Desfilavam seus rostos belos e o discurso comunista nos becos centrais sorrateiramente revolucionando as frias esquinas debaixo do apurado faro do Estado. Eles não possuíam armas – apenas bombas – embora fossem românticos o suficiente para andarem com livros e instrumentos nas mãos. Eles não existiram e foram o seu próprio sonho utópico, eles existiram e não foram heróis da própria luta. Eles não conheceram o Vietnã ou Hiroshima, mas souberam prender todo o mal de uma guerra nos versos, atando todas as pontas soltas daquele mundo sangrento nas cordas das guitarras tocadas com os dentes.
Os apaixonados do Arco do Triunfo em 68 beijavam-se entre gritos de vida ou morte e caminhavam entre mãos dadas por ruas infestadas de gente desesperada por algo que parecia ser justiça, desviando de enormes montes de tralha empilhadas nos postes de luz. Ousavam amar-se sobre o céu vermelho da revolta, espalhando graça e delicadeza aonde as bandeiras queimavam e as armas mais atiravam, ferindo as roucas vozes de protesto. Desafiavam o caos ao gozar da paz de tudo o que é mais puro e único dentro do olho do furacão. Eles foram às farpas e as enfrentaram, foram um exército de dois e o clamor de muitos, a voz esperançosa no escuro, o suspiro ansioso na parafernália intensa. E eles foram (acima de tudo) o fim da luta e do grito, porque agora, os amantes franceses de 1968 estão todos calados. De tédio e desgosto.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Avesso


O tempo não permite que eu passe toda a minha noite conversando casualidades com a sua pessoa. O dia que está para amanhecer nas próximas cinco horas me impede. Em suas palavras não enxergo nem um reflexo das minhas porque cada detalhe é tão particular e único que nem mesmo posso estender-me até eles.
Você agradece enquanto eu só faço rogar.
Você samba enquanto eu escrevo.
Você beija enquanto eu transpiro.
Você canta enquanto eu gaguejo.
Você não me copia, não se preocupa, alarde não faz, nunca sentou para ouvir e nunca sofreu para amar, mas só porque se apaixona e desapaixona com a facilidade de um estalar de dedos. Seus olhos não imitam, o seu corpo não se repete, é tão arranjado e exclusivamente seu. Você não sabe o que é o resto, a sobra. Você engole o prato inteiro e não deixa resíduos e ainda lambe os beiços e os dedos para ter certeza de que não há um grão de fora da sua garganta. Você tem um andar bonito e elegante enquanto eu desengonçada e tortamente me movo. Jamais sentiu aflição alguma, pois essa é, na verdade, a única vez que veio a sentir alguma coisa que não fosse a alienação costumeira.
Como em uma carta de alguém distante te desejo a fantasia dos dias claros e o triste otimismo do pobre cidadão. Esperando que você não padeça enquanto parto furtando toda a sua elegância, dando pouca importância às tuas dores, aos teus casos mal resolvidos, aos teus versos mal redigidos. Vou-me embora dançando, correndo, vibrando; cantando um tom desafinado, bebendo toda a água do copo, engolindo toda a comida do prato.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Afetuosamente,


A cidade cheira à chuva. O meu próprio corpo e a epiderme exposta que o reveste cheiram à chuva. E o meu corpo é a enfermidade e o espasmo, o cansaço e a calma. Um par de mãos me sufoca o pescoço sobre o chão de tecidos, as mãos pertencentes ao rosto de olhos vermelhos. As mãos de forças inconscientes - as mesmas que outrora acariciaram o teto almofadado em um gesto despercebidamente delicado.
Há certo tempo venho sendo a odiada destes olhos vermelhos e a querida dos olhos obscuros. Ambos me sufocam em seus desejos incessantes – por sangue ou por abraços. Não sei para quem corro: ao abismo ou às flores? Ao medo ou ao agrado? Às unhas ferozes por carne ou às unhas ferozes por amor? O meu corpo ensopado escorre para acolá desses pares de olhos e não me dá tempo de escolha. Resta-me outro caminho.
O caminho em que meu carinho imenso é todo direcionado aos olhos pálidos, é incessante como a garoa – que nunca morre, apenas sossega, para logo depois retornar ao seu círculo vicioso. Os lábios pertencentes a estes olhos descorados costumavam dizer que “a dor é todo ponto inatingível e incompreensível daquilo que um dia quisemos ter” sem saber que a própria cor destes olhos era o meu ponto inatingível neste pequeno-vasto mundo. O mundo em que meu afeto é líquido, é chuva que cai, e esta cidade... esta cidade é o dilúvio que eu criei para pôr cor nos teus olhos.