segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Veja Bem, Meu Bem


Tentei uma ode, um rabisco, uma canção de ninar, desculpas, contratos, provas e nada me saiu. Mas veja bem, temos a vantagem de que o final da primavera corre ao nosso favor. E já está se acabando também, mas veja bem outra vez, e repare que isso não importa essa noite.
São dias de muito sol e de borboletas negras invadindo a sala quando ele finalmente se põe, mas olha só, que agora é fim de noite e não há problema algum em salivar por um pouco de paz. Mesmo que a paz seja veneno ou arma engatilhada: é fim de noite e não há tempo para se importar com olhos peçonhentos. Pode abrir os olhos agora, porque assim se morre de costas pro gatilho e com os olhos virados pro céu. Pode levantar as pálpebras porque assim se morre também, mas ao menos morre-se assistindo as constelações que não sabemos nomear. Com a janela aberta não faz sentido algum fechar os olhos e eu faço questão. Veja bem, isso é a morte, mas não é doce? - ah, não soa assim tão doce morrer com as estrelas presas no céu da boca? E com música, pois há música nos meus ouvidos que talvez seja o raro vento de dezembro invadindo a janela ou talvez seja eu mesma, talvez seja o céu da minha boca sendo povoado pelos pontos de luz.
Está vendo? Estamos fadados. Mas veja bem, meu bem, ao menos se morre engolindo as estrelas.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Kryptonita


Isso aqui são labirintos. Parecem dedos, mãos, lábios talvez, olhos (sim, definitivamente olhos), mas só parecem. São mesmo é labirintos. Sem que Ariadne me dê um novelo de lã, eu me perco e meu corpo de Teseu é devorado pela imensa criatura que vive ali dentro.
No fim do labirinto, esta lá: a criatura. No final dos meus pesadelos também, quando eles se tornam sonhos bons, a criatura é sempre o fim. Quando a noite vira madrugada e as tardes viram noites, lá está ela. É o meu epílogo, o meu post scriptum mais importante, o meu ponto final precipitado. Me devorando sempre, todas as vezes, com as unhas, os dentes, com as pontas dos dedos e o canto dos lábios. E eu vou me dissipando, sangrenta, porque eu não tenho o novelo de lã indicando a saída. Me perdendo, ainda que estivesse com os olhos completamente abertos. Assisto a criatura engolir o que deveriam ser meus lábios com os seus lábios, ou destruindo o que talvez eram as minhas pernas com as suas pernas, o que talvez fossem os meus olhos com os seus olhos e os meus seios com as próprias mãos.
Mas de alguma forma misteriosa eu sempre acabo voltando. Inteira. Talvez com uma ou duas cicatrizes. E meus instintos, as minhas veias, a parte irracional (e a racional também) da minha mente me conduzem novamente aos labirintos. Eu os observo como um suicida enxerga a saída em um precipício, como um bebê enxerga o seio materno, um alcoólatra vendo uma garrafa de Jack. Encaro o meu círculo vicioso, e o meu corpo caindo, a noite na janela, o último mês, os meus pesadelos virando sonhos, e lembro a criatura, que é sempre aonde eu caio, a ferida no meu calcanhar, a causa que eu sempre perco e sempre ganho, o meu veneno mais doce, a criatura que é aonde eu não devo ir, mas que é onde sempre quero estar.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

No Imperativo


Me diz o que é que eu faço das coisas que eu quero dizer. Me diz o que é que eu faço se tudo que eu sempre faço é esconder. Me diz se eu enlouqueço ou deixo de lado, se teve sentido ou se está tudo vago, se eu tenho um espaço. Me diz se o que eu tenho feito é perder tempo, escrevendo bobagens, rezando por um tempo que não volta, me jogando tortamente nos cantos ou nas poltronas, atormentando outros ouvidos, saboreando outros silêncios. Me diz o que é que eu faço das minhas mãos pedintes e dos meus pés descalços, dos domingos perdidos, dos morangos, das tardes. Me diz o que é que eu faço das tardes, por favor.
Me diz se eu desfaço ou desamarro, se eu mergulho em Drummond e deixo Vinicius, se é vermelho, preto ou cor de vinho, se apago as luzes ou escancaro as janelas, se tranco as portas ou abro os braços. Me diz se é gelo, bobagem, ‘até nunca’, me diz em que modo e tempo devo conjugar os verbos e com que pronomes eu devo me referir a isso. Me conta o que é que se conversa depois das três da manhã, se eu nego e me despeço, paro e me arrependo, continuo e vou de mansinho, como quem não quer nada e bum. Me diz como se foge das coisas na sua própria cabeça, como é que se escreve uma música, me diz como é que se diz. Como é que se diz as coisas que se quer dizer, quando se sabe o que se quer dizer, mas não se sabe como fazer. Como é que se diz tudo aquilo que nunca disse, mas que deveria ter sido dito há muito tempo. Me diga o que eu não posso dizer, me diga o que eu devo dizer, me diga o que eu devo fazer só pra que eu possa me alinhar, só pra que eu possa me alimentar de novo, só pra eu poder escutar - só pra que eu possa sossegar outra vez no seu desassossego.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Reprise


Então é isso um ponto final. É isso um ponto final? É um ponto...
Desculpe-me por usar tantas reticências. É que eu não consigo deixar isso para trás. Eu fico remoendo aquela noite de sábado, em que eu tremia feito uma criança amedrontada. Eu dizia que era só o frio, deitada no chão da sala, mas talvez eu apenas estivesse em um estado de graça nunca conhecido antes por alguém como eu. E isso me dava um medo estranhamente feliz.
Eu fico reprisando na minha mente já conturbada o tom da sua pele nas costas das mãos e o cheiro do seu cabelo recém-molhado do banho. Repriso, repriso, repriso, como eu reprisei em mim todas aquelas coisas que um dia eu senti, abandonei, voltei a sentir e está (estão) me forçando a abandonar outra vez. Mas eu me prendo demais às reticências, eu não consigo deixá-las de lado...
Releio aquelas palavras como um novo livro de histórias, mesmo já tendo decorado-as tanto como decorei as do meu livro favorito. Mas “é como um rio que flui indo certamente para o mar”, sabe? Eu não posso evitar todas aquelas músicas, eu não posso evitar todas aquelas letras, eu não posso evitar todas aquelas palavras que eu digito freneticamente, eu não posso evitar toda essa ausência.
Ai, não me lembra, não me lembra, cara lembrança, de “Ausência”, de Vinicius de Moraes. Não, não, não me lembre da existência daquele verso-- eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces / porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto -- que me dá até um silêncio.
Dia desses tive um sonho com aquela noite de sábado. Dia desses quis congelar o tempo naquele primeiro dia e parar todos os outros dias e cessar todo o passar de horas, o passar de vida, o passar dos meus pés capengos (e lentos, sabe) -- no entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida / e eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz – mas provavelmente ninguém além de mim gostaria de ficar por lá, naquele dia, parado.
E mais uma vez eu mato o que me faz bem. É quase como se eu matasse toda e qualquer possibilidade de felicidade em uma tola e estúpida tentativa de, justamente, ser feliz. Coisa de gente que dá ouvido demais a sermões e a falatórios estúpidos. O que me faz duas vezes estúpida-- eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face / teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada -- , duas vezes auto-destrutiva, duas vezes repensada, duas vezes seca, duas (ou três, houve outra há muito tempo) vezes encolhida no meu próprio lixo.
Eu confesso, ia vir aqui e falar sobre como a vida é mesmo mais Nelson Rodrigues, como a vida é mesmo mais Bukowski, sobre como a vida é limpar a merda dos outros nos banheiros públicos com o coração estraçalhado, sobre como a vida cheirava a coisa podre e lágrima, mas eu não vou porque -- porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa / porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço / e eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado / e eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos.
É aquele nó outra vez, aquele gosto de erro todo outra vez, aquele gosto de mágoa, aquela cabeça abaixada atrás da porta vermelha, é a ausência, a ausência, -- e todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas / serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada – a voz que eu odeio calar.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Veludo


Acordei com vontade de escrever um poema que ninguém fosse ler.
Assim, solitário, feito eu e você, como aquele que um dia me escreveu.
Pego um giz e anoto no espaço: “Eu tenho algo pra dizer.”
Mas se aquiete, sossegue,
Ainda não resolvi direito, inda tenho um desassossego que assusta.
A ausência está em todo lugar, você sabe.
E eu não seria tão feliz, agora, em lugar nenhum.

Eu queria escrever um poema que ninguém fosse ler
Nem eu nem você nem ninguém
Eu queria que o poema brotasse da minha garganta e fosse escorregando em silêncio
Em formato de toque, beijo ou veludo.

Eu sempre tento que os poemas vazem em silêncio.
E eu queria escrever um poema que falasse sobre as coisas que eu escrevo quando estou tocando ou beijando ou apenas
Em silêncio. Para que ninguém entenda.
Entende?

Eu vou deixando esses espaços, criando essas estrofes tolas
Para que preencha com o que quiser
Mesmo que o querer seja nada.

Estou com vontade de escrever um poema que ninguém pudesse ler.
Que pedisse algum feitiço-senha para que pudesse ser lido.
Sobre as coisas que foram rápido demais porque deveriam ter sido há muito tempo.
Um poema com todas as coisas que foram hoje
Com todas as coisas que ainda serão
Com todas as coisas que não foram, mas deveriam ter sido
Com as que deverão ser, mas não serão
Com as que serão quando deverão ser
E com as que serão mesmo quando não deverem.

sábado, 8 de outubro de 2011

Le Rouge


Estamos no campo. É outono e um carro de som anuncia pelas ruas da cidade a chegada do cinema itinerante. O burburinho logo se espalha por toda a região – que nunca havia recebido a visita do cinema, e muito menos possuía um fixo – deixando a população em estado de ansiedade. Seria na noite seguinte, era sábado.
A menina ouvira a notícia enquanto sentava na porta de casa, os pés estirados na calçada, como fazia todos os fins de tarde para escutar os sons vindos da rua e sentir os aromas das sacolas que as senhoras traziam da feira antes da noite cair – as frutas, vez ou outra um cheiro de pastéis e sempre o frescor das verduras. Do alto dos seus jovens oito anos, ela não podia enxergar. Por isso, apegava-se a tudo que seus outros quatro sentidos pudessem lhe proporcionar, almejava os detalhes, todos os pormenores que seus ouvidos, mãos, nariz e boca pudessem lhe dar.
Assim que ouviu o anúncio no carro de som, foi chamar o irmão mais velho. Gostaria que ele a levasse para o cinema na noite seguinte. Seria domingo e havia uma melancolia nas noites de domingo – melancolia esta que não haveria amanhã se ele o levasse ao cinema. Ele considerou por um momento, enquanto ela lhe pedia, o fato de que sua irmã era cega. Hesitou. Cedeu. Havia algo de especial em sua irmã querer ir ao cinema e mesmo assim, seria uma nova experiência para ele mesmo. Nunca havia ido ao cinema.
A noite seguinte chegou. Ambos foram, sozinhos, o irmão guiando a menina com seus braços dados, caminhando pela rua principal, que levava a um grande terreno de terra batida aonde o cinema itinerante havia se instalado. Chegando lá, havia fila, o que já era esperado. Os dois encaminharam-se para o final da linha enquanto aguardavam. A menina passou a observar com os sentidos outra vez, sentiu cheiro de pipoca, tateou sem querer uma placa (seria onde estaria escrito o nome do filme? Ou talvez o nome do cinema?), ouviu algum barulho distinto.
“O que é?”, perguntou ao irmão.
“O que é o quê?”, disse ele.
“Esse barulho, na nossa frente, não consigo... identificar.”
“Shhh! Fale baixinho! É um casal.”, sussurrou ele.
Os dois continuaram a aguardar na fila, enquanto a menina prestava atenção aos detalhes dos sons do casal na frente, imaginando como seriam seus rostos, como seriam suas roupas e o que estariam fazendo. Aguardaram por cerca de vinte minutos, até que puderam entrar e sentar-se na fileira do meio. O filme estava começando e a menina percebera porque sentiu o calor da luz da grande tela refletindo em seu rosto levemente. Ela pedira que seu irmão descrevesse aspectos visuais do filme, para que pudesse entender a história não só com o que escutava. Ele descrevia as cenas, passadas dentro de um grande sobrado, relatando os cômodos, um detalhe ou outro.
Até que houve uma cena na cozinha da casa, em que a personagem escutava uma música que a menina reconheceu ser um pouco antiga – década de setenta, talvez.
“Ela está dançando na cozinha”, disse o irmão. “Com uma caneca vermelha nas mãos.” A menina construiu a imagem em sua cabeça: a cozinha, a personagem – o irmão dizia que era feia, muito alta, com o nariz protuberante, por volta dos 30 anos – dançando aquela música antiga (a menina a havia escutado algumas vezes) e, no entanto, teve uma pequena pausa em seus pensamentos ao chegar na caneca. Vermelha. Mas a menina não sabia o que era vermelho, não sabia como eram as cores, estas não podiam ser captadas com o toque, olfato, paladar ou audição. As cores eram o seu mistério, o enigma do vermelho. E todo o tempo que se seguiu durante o filme, ela tentava imaginar como seria se ela visse cores, em tudo tentava botar cor, nos olhos, nos móveis, nas vozes – porque ela não sabia se as vozes também possuíam cor. E então ela passou a buscar cores em tudo, após o cinema, ao sentar na calçada nos fins de tarde, nos cheiros das sacolas trazidas da feira, nas roupas dos casais se beijando na fila do cinema, nos filmes, na cidade, nela mesma.

sábado, 24 de setembro de 2011

"A poem is a petition, a petition is a poem..."


Pra quê ideologia sem amor
Se todo o meu torpor agora é dor
E a minha verdade agora é parte
De uma guerra que eu perdi
Se todo amor que eu nunca dei
Agora é dado por outro alguém
Nesta terra de ninguém
Só nos resta o que sobrou

(Escrito em outubro de 2009).

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Sobre Uma Flor


Hoje é dia 23 de setembro.
Hoje é dia 23 de setembro e eu olhei pela porta aberta da sala as palmeiras, de longe iluminadas, como um viciado em heroína olha para as árvores que rodeiam a sua clínica de reabilitação. E de fato acabei parando em uma.
Hoje o meu único sentimento por alguém que um dia eu guardei uma dose de “amor” – eca, como pude? é tão difícil dizer essa palavra agora - é nojo. É a minha bile se debatendo no fundo do meu estômago, quase chegando a minha garganta com o desejo de cuspir toda a sopa mal-feita que se come em uma clínica. É uma feroz vontade de cortar todo o corpo em pequenos e perfeitamente alinhados pedaços de carne de 1 cm. Em cubinhos, como os temperos de cozinha. Como um perfeito e asseado serial killer.
E é por esse tipo de desejo que eu não me surpreendo por estar aqui hoje.
Hoje é dia 23 de setembro e eu matei uma formiga para aliviá-la do sofrimento de estar caminhando machucada.
Hoje uma flor brotou no deserto e eu também a matei.
Hoje, e mais especificamente agora, alguém perto do lugar onde estou – a minha clínica de reabilitação imaginária – está ouvindo I Miss You e penso que isso é absurdamente irônico.
Hoje eu arranquei do meu dedo uma lembrança (que tem formato de dois corações grudados - e essa imagem é tão absurdamente sádica, Deus! – aliás Deus, se é que você existe mesmo, desculpe-me por usar seu nome em vão, mas sou assim mesmo).
Hoje eu quis dizer to mommy (sim, “to mommy” assim como um bebê no escuro clamando por leite, e pouco me importa o que vão pensar) que esteve certa na maioria das vezes e que eu sou terrivelmente estúpida (afinal, isso aqui não é mesmo uma clínica de reabilitação? pessoas emocionalmente inteligentes não vão à reabilitação).
Hoje, como nunca, eu entendi Holden Caufield: “As pessoas sempre pensam que algo é inteiramente verdade. As pessoas nunca notam nada. As pessoas nunca acreditam em você. As pessoas sempre aplaudem as coisas erradas. As pessoas nunca dão as suas mensagens para ninguém.”
Hoje eu expliquei coisas pensando em como eu tinha arrancado aquela flor do deserto; tentei fazer poemas, mas estava seca porque matei a flor; verti um bom tanto de lágrimas em uma blusa azul porque eu matei aquela única flor no deserto; respondi questões inúteis com respostas inúteis para receber uma avaliação inútil sem prestar atenção no que escrevia porque só pensava na flor; eu não paro de pensar que eu deveria ter o mesmo destino que ela para que a justiça fosse feita; eu a matei para só depois descobrir que a flor no meio do deserto – quase um oásis de ternura em meio àqueles montes de cactos secos e mentirosos - era a única flor que havia conseguido brotar em todos os desertos do mundo e que ela havia decidido brotar justo ali, no meu deserto. Eu a matara e o deserto é agora apenas areia – fria, porque é madrugada – e eu – presa aqui, nessa clínica de reabilitação para gente viciada em errar – desejando que aquela flor volte a brotar, assim, em segredo, como fora desde o começo, se recompondo meio molenga, se firmando outra vez, porque – ai, isso dói mesmo, isso dói muito, eu deveria ter dito o quanto eu amava aquela flor logo quando a encontrei há um tempo e a achei esplêndida, nada disso teria acontecido, absolutamente nada; como o Pequeno Príncipe, eu colocaria uma redoma para que a flor não sentisse frio nem fosse atacada por animais, eu cuidaria dela como se ela também me amasse e nós poderíamos ter sido – como é mesmo a palavra? ah, sim – felizes.
Hoje é 23 de setembro e eu descreio tanto nessa palavra - “felizes” – que acredito que preciso soletrá-la em voz alta para que eu possa lembrar o seu significado. Ah, sim.
F – E – L – I – Z – E – S.
É assim, não é?
É, talvez seja assim.
Eu não sei porque eu matei a flor.
E agora eu fico com esse gosto na boca, de nojo do outro, de nojo de mim, de saudades, de tristeza, de bile, de sopa mal-feita, de palmeira iluminada ao longe, de clínica, de coisa dolorida dolorida dolorida, de arrependimento, um gosto de vontade imensa imensa imensa de ressuscitar a flor e cuidar dela dessa vez. Um gosto assim, de flor. Branca. Que brotou no deserto.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

O Último Oceano


As pessoas estão falando em “antes” e “agora”. Eu mesma falo em “antes” (it hurts a little or maybe a lot) e “agora”. O antes era assim: tinha gente, e essa gente encantava quando abria a boca para cantar e dizer; tinha gente, e gente que se amava muito ali no meio, amor mesmo, desses que doem e formam casais; tinha gente, e essa gente sentia-se muito honrada; tinha gente, e eles sorriam (ai, como eles costumavam sorrir para cantar, mesmo com as cordas vocais meios gastas – ai, como eles sorriam).
O que me entristece no antes não é exatamente o que poderia ter sido e não foi. O que me entristece no antes são todas as coisas que poderiam ter sido e foram. As escadas atrás das luzes, as coisas sussurradas (bem ali atrás, onde ninguém vê), quando o suor vibrava, quando amar era êxtase e não lágrimas que uma ou duas garotas escondem no banheiro e enxugam no casaco vermelho, quando você costumava gostar de mim, quando todos nós costumávamos gostar (gostar mesmo, entende? aquela sensação de que está tudo se abrindo, exposto e dane-se – isso não é nenhum problema), quando era tudo tão nítido, quando era tudo tão claro (sabe, nós éramos, apesar de tudo, felizes e nem sabíamos).
O agora somos nós remando contra a maré. O saldo é esse: dois corações partidos, duas partes inteiras partindo, um bando de palavras ácidas escapando por aqui ou por ali (mas não vamos falar de coisas ácidas, porque as pessoas ácidas andam me pesando demais nessa memória e nesse íntimo cheio de cacos), uma ou duas flores brotando bem ali no canto (ninguém sabe, ninguém viu), estagnação, estagnação, estagnação (me desculpem, isso foi uma lágrima que escorreu), e essa vontade insana – um anseio quase maníaco – por um pouquinho de graça, por uma pontinha escassa de amor (dessa vez por si próprio, só porque amar a si mesmo é mesmo muito mais fácil), por um pequeno oásis onde ainda não se fez deserto, mas também não se é mais oceano.
Perdoem-me por ser um tanto quanto comum agora (e sempre): que o “amanhã” nos deixe ser capaz de sorrir. Tal qual o “antes”, embora diferente. Sempre diferente.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

As Coisas Minhas Que São Sobre Você


Seco as minhas frustrações com dedos que não são meus. E fico pensando no que me disseram, no que você me disse e até mesmo outras pessoas, e também eu fico dizendo coisas a mim mesma. Eu costumava fazer isso em silêncio antes, mas então eu sucumbi ao impulso de dizer.
E eu estou dizendo.
Estou dizendo que você me deu tempo para pensar e que mesmo assim só levei 30 segundos do dia 30 do mês 3 para te responder porque eu não tinha mesmo grandes dúvidas, estou dizendo que antes eu entristecia nas janelas de ônibus pelas pessoas das poltronas da frente mas que naquele dia, naquele ônibus, (e você nem sabe do que eu estou falando) eu cobri a minha cara com a blusa porque eu estava sofrendo de felicidade-lacrimejante em excesso, e que eu estava sofrendo de felicidade-lacrimejante em excesso porque você me disse uma coisa que

(eu-sou-louco-por-você)

me deixou assim-assim mole por dentro.
Estou dizendo que eu lembro de ter me ensinado que chicletes ficam 10 anos no organismo e que isso me lembra que até hoje não faço idéia de onde foi parar o meu único chiclete do dia 12 do mês 2, mas que eu devo mesmo ter enfiado no bolso direito da minha calça jeans sem perceber enquanto pedia desculpas por ter te atacado, estou dizendo que eu amei os seus livros, as suas músicas, as suas coisas de couro, os seus brincos – eu mordi os seus brincos –, a pequena cova na bochecha esquerda, o contorno das costas e também

(as-coisas-nem-sempre-são-como-a-gente-quer)

muitas outras coisas que eu nunca contei.
Estou dizendo que você me fez atravessar a estrada a caminho de casa só pra sentir um vento quase apoteótico bagunçando o meu cabelo e batendo no meu corpo e que eu permaneci impassível, mas que foi mesmo muito divertido, e estou dizendo que muitas vezes eu quis te dizer ‘eu-também’ mas não consegui (e ah, me desculpe mesmo por isso), e que todas as vezes que eu me embaracei e troquei sílabas palavras e pensamentos aconteceram só porque eu tenho isso de travar o cérebro perto de alguém que

(já dizia o mestre “ah como você me dói vezenquando")

me deixa assim-assim descomposta feito você, ainda que tudo o que você tenha para me dizer agora seja apenas:

(eu preciso ir embora.)

Estou dizendo também que é melhor ir parando por aqui - tão importante quanto dizer é parar de dizer. Assim, com um ponto final abrupto desses que encerram uma linha de raciocínio (ainda que sem muito sentido) antes que fique mesmo muito difícil de separar o coerente do sentimental.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Nem

(Os devidos créditos: 1) http://migre.me/5r0ig e 2) http://migre.me/5r0iW)

Ai! Que tudo ficou amargo!
Não tem mais adaga nem ipê, não tem mais dinheiro nem paixão, não tem mais descanso e só resta desejo, só tem não, só tem o nada e também a falta, não sobrou o voo e não tem nem chão, não tem mais alma, nem salto, nem ribalta, nem amplidão.
E agora, você?
Não se tem família nem malucos, o romântico se perdeu com o burguês, nunca conheci Copacabana nem a Bahia, nem o calado ou o garanhão, não tem mais canção, não sobrou não, nem sim ou talvez, razão nunca teve, não tem mais raposa nem amigo, não tem mais cowboy, não tem mais chinês.
E agora, você?
Não tem mais espírito nem ação, nem ternura ou tesão, não tem verso livre, não tem decassílabo, anjo nunca teve, mulher não tem mais, prazer também não, só dor, mas tortura não tem mais, nem mansidão nem lar ou revolução, nem bandido, nem herói.
E agora, você?
Discurso não tem, nem televisão, romance não tem, sobrou rock’n roll, não tem mais lua nem o sol, pra pura natura o fogaréu, acabou o mistério, acabou a luz, não tem mais canto nem mundo inteiro, nem quaresma ou fevereiro, não tem coqueiro só tem solidão.
E agora, você?
Você que tem nome, você que me zomba, você que me testa, você que não me escreve, você que não ama, você que me cala, e agora, você?
E tudo vibrou, e tudo trocou, e tudo que fui e tudo que foi e tudo.
Tudo amargou.

domingo, 31 de julho de 2011

My Best Wishes


Eu quis criar um universo paralelo onde você e todos os outros pudessem ser felizes. Eu juro por todas as coisas que já te disse que eu quis, naquela madrugada em que você me contou aquelas coisas, ser capaz de fazê-lo, mas eu não pude. Nesse outro universo você teria me enxergado de súbito, como alguém que caminha por estrada estreita e topa em uma pedra. Eu juro, eu quis ser a tua pedra nesse outro universo. Você tropeçaria em mim logo no começo da tua estrada, bruscamente, tão repentino que as minhas bordas rústicas cortariam as tuas pernas e os teus pés, fazendo sangrar um pouquinho. Só assim você me enxergaria. Porque nesse universo – o real -, você flutuou por mim e continuou seguindo. E agora está tudo limpo e seguro demais e o seguro te sufoca.
Mas me desculpe, agora é tarde demais pra que eu bagunce o seu caminho seguro e sufocante. Você precisa saber uma coisa que me dei conta e que você talvez não tenha se dado conta ainda ou talvez nunca se dê conta (porque está preso nesse universo sem pedras onde não pode sangrar e, conseqüentemente, não pode viver) e te deixo transcrito abaixo como quem sabe fazer versos, em bilhete soturno:
a gente espera por aquilo que não faz,
a gente faz aquilo que não espera,
a gente fala aquilo que quer ouvir,
a gente esconde o que queria dizer,
a gente mendiga aquilo que não somos nós,
nós não somos nada e mendigamos ser.
Estou no ápice dos meus nervos, estou no ponto culminante dos meus nervos que silenciosamente fervem de uma lucidez muito crua a respeito da sua situação (e também da minha). Nós estivemos calmos por muito tempo, mas você diz que topou comigo agora – justo agora, é tarde demais! – mas não sobrou nenhum canto cortante na minha superfície de pedra, então não posso te arranhar e te fazer sentir qualquer coisa que não seja inércia. Me desculpe, a minha acidez é agora única e exclusivamente minha. Tudo que eu posso te dar é esse bilhete e pedir e rezar (embora eu não reze) e torcer (embora eu quase nunca torça) e desejar (sim, eu desejo muito) que entenda e silencie e cale-se e sossegue assim, tal qual um chuvisco, quase como uma brisa de setembro ou de abril, um sussurro de despedida, o silêncio das manhãs de domingo, o mar batendo saudosamente sobre um corpo semi-nu, eu desejo a você, é isso que eu desejo profundamente a você.

domingo, 17 de julho de 2011

Congelados


Estivemos caminhando ao lado de um rio de escuridão. Até que houve um domingo em que nós chegamos ao ponto em que o rio deságua no mar e aquilo tudo ficou gigante demais para os nossos corpos miúdos. E então nós decidimos parar. A lua inchou no céu e tudo o que se movia eram dois cachorros negros latindo ao redor do rio. Nós estagnamos diante da imensidão sombria do mar.
Toda aquela água salgada (que antes, dio mio, era doce) nos acusava em seu suave barulho de ondas que nós éramos covardes. Que nós não iríamos nunca, nós não seríamos nada nunca porque éramos inúteis e que tudo estava tão salgado, tudo era salgado demais para nossos corpos miúdos...
Vou te contar uma coisa: os meus olhos também estavam salgados. Você não via porque estava escuro demais. Mas os meus olhos também eram mar. E eu soube – porcamente sentindo – que os teus olhos também eram mar. Então eu te desejo muito, muito, mas muito açúcar. Ou melhor, eu desejo a nós muito, muito, mas muito açúcar. Para parar com esses nossos olhos de sal.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Antropofagia


Ando achando que todos os tipos de relacionamentos existentes foram feitos para ir enlouquecendo a gente devagar, assim como o cigarro vai matando aos poucos. Tenho achado que conviver é definhar em silêncio.
Todos os principais motivos da sua loucura não se importam com o que são e nem sequer sabem o que são. Nem desconfiam que andam te enlouquecendo quando discutem com você no meio de uma escada ou quando insistem (e como insistem) – é só pra te definhar, é só pra te fazer engolir em seco, é só pra te deixar no caos que você acumula todos os dias. É só pra te fazer deixar.
Uma caixa de charutos empobrecida consome tantos pulmões quanto as pessoas se consomem, em uma eterna antropofagia. Todo o ser humano é um canibal nato e não nega sua condição por puro prazer. Há um prazer na agonia alheia que não se explica, e também na própria agonia; o mesmo prazer daquele que inveja e daquele que fuma, do que ambiciona e daquele que come em excesso.
Dotados de podres poderes e “liberum arbitrium”, nós nos mutilamos em segredo. Finge que não entende quando digo que as paredes ainda molhadas de tinta têm cheiro de lágrima. Finjo que o meu silêncio não é um punhal. E continuamos nos perdendo, perdendo, perdendo, perdendo, perdendo...
em nossas próprias mentes – dois Dorothys sendo levados por um ciclone à Terra de Oz.
E o próprio amor (que nos parece sempre tão imaculado) chora, odeia, arrepende, desfaz e volta a ser carinho, afeto, açúcar. Para logo depois ensurdecer, rasgar, estraçalhar, morder e decepar tudo outra vez, no eterno ciclo dos canibais.
Como Hannibal, eu afundo na tua carne humana os meus dentes igualmente humanos, com os olhos ainda sãos. E enlouqueço.

(tão doce quanto sanguinário)

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Ciclo


Eu, que já perdi a hora e o lugar, escondo na boca o doce que a hora não tem. My darling, oh, darling, darling, dear darling, estou presa longe do asfalto, longe da estrada, longe da rua pela qual não posso andar. Darling, eu nunca chego ao ponto em que se pode andar na rua sem que me brote na testa (como o nariz crescia de Pinóquio) as palavras “live and get locked, live and get locked...”
Agora que não tenho mais medo, nenhum desses medos que costumamos ter quando coisas boas aparecem, essas palavras – repreensivas, mandonas, assassinas – ficam me escondendo assim, toda para dentro das paredes e dos muros. Darling, oh, darling, darling, dear darling, amanhã eu fujo pelo mar de tecidos, lenços e lábios.
Escapo pela porta da frente, assim, de cara lavada e tênis azuis, sorriso de quem não tem paredes ou muros. Amanhã eu te prometo que quebro as paredes e não dou ouvidos ao “live and get locked”, amanhã eu vivo, yo vivo, je vis, I live, my darling. No mar de tecidos até a terra dos homens, amanhã eu escalo as montanhas de tempo perdido mesmo com palavras me brotando na testa, paredes quebradas, muros caídos, e algumas conversas ao telefone com essas vozes molengo-capengas de quem esconde tristeza.
Mas tudo isso só para que depois de amanhã, my darling, oh, darling, darling, dear darling, para que depois de amanhã eu não perca a hora e o lugar e que o doce da hora seja mais doce que o doce na boca. Para que depois de amanhã eu esteja no asfalto, na estrada, andando na rua, com a testa limpa de palavras, sem montanhas de tempo perdido, sem voz molengo-capenga, sem paredes, sem muros, com darling.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Aqueles que Eu Escrevi (El Tango de Roxanne)


Guardei todas as minhas melhores palavras tão bem escondidas que não posso achá-las por mim mesma. Continuo a procurar respostas à altura do que você me sussurra e eu não as encontro, aí então, fico ouvindo El Tango de Roxanne enquanto ando pelas ruas, pensando que Roxanne “não deveria colocar-se sob as luzes vermelhas” assim como eu, talvez, não devesse me colocar sob essas luzes de cor âmbar, azul e igualmente vermelhas e que talvez eu devesse continuar assim no meu canto (sempre como quem não quer nada, não ouve nada, não sente nada) tentando decifrar onde é que estão as coisas que eu queria te dizer.
Mas então eu volto a pensar que se não houvesse cá dentro esse gosto pelas luzes de cor âmbar, azul e vermelha não haveria palavras se escondendo, não haveria sussurros, não haveria você. Eu não teria previsto a sua chegada com um dia de antecedência em uma sexta-feira de fevereiro. Escrevi sobre você antes que você viesse, antes que eu fosse até você, antes, antes, pouco antes. E não me refiro aqui a esses casos transcendentais-espirituais-cósmicos de adivinhação porque – sabe bem, essas coisas não fazem a minha linha – apenas vou dizendo que, bem, eu previ mesmo isso tudo (era fevereiro, eu me lembro, sexta-feira de madrugada que escrevi, havia sido um dia livre, havia sido um dia em que fui eu mesma - eu me lembro que escrevi tão feliz que era eu mesma e que esse eu mesma envolvia você, embora eu ainda não o conhecesse) e então no outro dia você veio. Chegou em um sábado, na madrugada seguinte. Tão livre, sob a luz fraca, na frente dos meus olhos turvos, todas aquelas coisas que eu havia previsto sem saber que o fizera.
Em uma língua que eu considero esquisita, El Tango de Roxanne ainda toca. Eu apenas não sei dançá-lo, mas eu o entendo perfeitamente agora; agora que eu encontrei as palavras que eu queria dizer – e que ele também diz.

And please, believe me when I say…

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Os Versos Que Eu Não Escrevi


Me visto com o manto de todos os meus santos pecados. Meus erros em vermelho como todas as pessoas que amei.
Agora eu me sento e espero: ainda é manhã de segunda-feira.
Porque o passado e o presente vão se misturando em histórias que você me conta, que nós vivemos, que eu costumava amar, enquanto o coração se desmonta e retorna a consertar por si só. E é selvagem, essa violência que escondo no espaço mínimo entre as unhas e a carne; é solitária, essa esquina que eu cruzei a esperar; é suado, esse veneno de espera, esse brinde não consumado de vingança não cumprida.
Tudo isso apenas porque há tanto medo de se parecer piegas-romântico-conquistador-barato que se acaba virando essa coisa bruta, essa coisa com as mãos sujas de terra e de suor, essa coisa que cala e que não diz o que sente. Essa coisa que não é suficiente. Essa coisa que também sou eu.
Por isso vou te dizendo que ando procurando uns versos de Vinicius de Moraes, de Fernando Pessoa, do Chico Buarque, dos concretistas, dos ultra-românticos, dos nada românticos também, do Cazuza, de Ferreira Gullar, ando procurando nos versos de Bertolucci com a câmera, de Mario Quintana, da Cecília Meirelles, de Drummond, de Paulo Leminski, de Edgar Allan Poe e também de Shakespeare, do Pablo Neruda, do Renato Russo, do Morrissey e da Marisa Monte, procurei também pelo Rimbaud e pela Rachel de Queiroz só pra falar aquelas coisas que eu não sei, só pra te contar de mim, só pra te dizer que.
Só pra dizer que.
Pra dizer que--
Só pra dizer.
Que--
Só.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Vestido de Noiva


(just a little bit of sweet, old and foolish love; another story about deception)

Marieta estava bela como nunca. Os cabelos negros e longos atados em uma fita de cetim branca como a cor do seu vestido. Era uma peça sem alças ou mangas, com uma longa cauda ressaltando o seu belo corpo cheio. Experimentava-o por puro prazer. Sem jóias ou maquiagem - uma beleza limpa. Olhava-se no espelho com certo carinho e o espelho retribuía-lhe a imagem da flor da idade. Dezessete anos e um grande sonho: um dia entrar na igreja com este vestido costurado pelas próprias mãos.
Era década de 40 e as garotas ainda esperavam ser cortejadas por um cavalheiro que passasse pela janela ou por um charmoso estranho na fila do cinema. O estranho de Marieta, entretanto, possuía nome: Abel. Cabelos castanhos penteados com escovinha, suéter xadrez, sapatos lustrados. Suspiros no coração da menina. Conhecia-o pelas sessões de cinema - ambos eram apaixonados pelos clássicos americanos e sempre podiam ser vistos na fila de ingressos. Do ponto de vista dela, já haviam se cortejado entre olhares. Certa vez, recordou ela, Abel pareceu até mesmo piscar para ela com o olho direito e sorrir-lhe de um jeito cativante e quieto que a amoleceu os ossos feito gelatina.
Ainda não haviam trocado uma palavra sequer quando Marieta decidiu ter a prova concreta de que era correspondida. Naquela (até então) doce sexta-feira, decidira ir ao cinema com um belo lenço de seda de sua mãe e, displicentemente, deixá-lo cair aos pés do rapaz. Caso ele o pegasse e iniciasse conversa, estava certa: o encantamento era mútuo! Arrumou-se no seu vestido estampado cor-de-lilás, a mente entretida em imaginar-se em seu casamento (o vestido que tanto estimava, Abel a aguardá-la no altar com um sorriso no rosto).
Emaranhada nestes pensamentos, chegou ao cinema radiante. Logo no meio da fila de ingressos, viu-o, belo e vistoso, vestido em azul-marinho. Marieta aproximou-se com o lenço nas mãos e um sorriso no rosto. No exato instante em que seu dedo indicador soltou-se do lenço, alguém precipitou em direção a Abel e deu-lhe um cuidadoso beijo apaixonado. Ao virar o rosto, Marieta pôde ver quem era: Lúcia, sua melhor amiga. Ambos não a viram virar de costas e partir, enxugando lágrimas com o lenço que outrora representou felicidade.
Marieta foi para casa, seu coração um caos de cacos. Fez as malas, guardou tudo, deixando apenas o estimado vestido. Saiu de casa sorrateira com a bagagem, sem que sua mãe Marinildes visse. No portão, deixou um anúncio. Na mente, a decisão de fugir da pequena cidade de Esperança, pois desta não lhe restara nada. No anúncio, deixado no portão, vendia seus sonhos por uma barganha:
"Vende-se um vestido de noiva, manequim 46, sem uso, tratar com Marinildes - tel..."

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Moscas


"De repente Dona Carolina deixou cair o garfo e soltou um grunhido. Todos se precipitaram para ela, abandonando seus lugares à mesa: a filha, o genro, os netos:
- Que foi, mamãe?
- Dona Carolina, a senhora está sentindo alguma coisa?
- Fala conosco, vovó?
A velha porém só fazia arranhar a garganta com sons estrangulados, a boca aberta, os olhos revirados para cima.”

(Espinha de Peixe – Fernando Sabino)


A imagem grotesca da velha com a face retorcida em esgar trouxe a todos os arrepios do medo. Da morte, da surpresa, do desconhecido, das coisas horrendas? Seria isso, de fato, caso tratássemos aqui de pessoas com certo padrão moral. Todo o clã dos Sousa Galvão reunido para o jantar da sexta-feira santa, entupindo as entranhas com o maravilhoso (“delícia de bacalhau!”) prato preparado pela matriarca. Aparentemente, uma típica família burguesa dos bairros de classe média do Rio de Janeiro. Dessas em que todos se reúnem aos domingos, a avó é uma viúva rancorosa e os pais estão sempre atarefados demais atrás de dinheiro para notar a ociosa vida dos filhos. Mas, como já disse outrora, a moral era apenas aparente. O verdadeiro medo que permeou de frêmitos a espinha de toda a descendência de Dona Carolina estava atado a um pulsante fio de satisfação. E esse fio estava atado a outro, o da desconfiança.
Pois bem, eis um fato: todos ali odiavam a velha com toda a dedicação. Era amarga, cínica e fazia questão de espalhar a todos o seu rancor mais íntimo. Ralhava com os netos a todo o momento, pressionava exasperadamente os filhos e aos genros vivia a atormentar com farpas e humilhações. O primeiro sentimento que assolou a todos – o medo – foi o de que alguém houvesse posto veneno na comida de Dona Carolina e, então, que todos se tornassem suspeitos do assassinato. O fio de satisfação que pulsou em todos, no entanto, é óbvio. Somente a vaga sensação de que ela e toda a sua animosidade pudessem vir a terminar logo ali enchia a todos com uma sensação repleta de otimismo (“Poderia sim ser o fim da amargura desta velha que abate a família por todos esses anos”, pensou um dos netos). E o último fio, o da desconfiança, surgiu ao passo que, cada um sabendo que não havia planejado a morte da velha, começou a desconfiar um do outro, imaginando quem finalmente havia tido coragem para pôr um fim a ela.
Foi então que Dona Carolina, entre tosses e acessos agonizantes de soluço, inclinou-se sobre o próprio corpo com certa agressividade e finalmente expeliu o motivo daquele caos de poucos minutos: uma pequena (e nem por isso menos incômoda) espinha de peixe. Ela continuou em sua posição fatigada por algum tempo. Tempo este em que os Sousa Galvão experimentaram o sabor confortável do alívio e também o azedo da decepção. Dona Carolina continuara viva por fim. Entretanto, neste exato momento, a velha começava novamente a ter calafrios pelo corpo todo e a retorcer a face em sons estrangulados, inclinando-se outra vez em uma imagem grotesca.
Para a surpresa de todos, a velha começou a expelir pela boca pequenos insetos pretos – moscas – escuras, sujas, saindo em revoada por entre seus lábios, vindos da sua garganta azeda. Trataram logo de se espalhar por toda a sala de jantar, zunindo e fedendo absurdamente em um eterno incômodo aos Sousa Galvão. Digo, pois, que eram moscas amargas, cínicas, cheiravam a rancor. Como os anseios de uma velha.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Enigma No Trapézio


Pensei ter desaprendido o artifício das letras. Contudo, por mais que a pele e também a carne predominem e prevaleçam por certo tempo é com as palavras que me componho e teço a teia da franqueza. Não sei ser sempre sigilo. Pois a raiz de todo o mal é o silêncio, a raiz de todo o silêncio é o medo e toda a raiz sabe morrer.
Andei nos últimos dias com uma placa pendurada ao pescoço como um bobo da corte, dizendo “abandone ou abarque”. Assim, calada. Com a placa na nuca - dizendo tudo - rasgando todos os meios-termos: os meios-amores, esses abraços meio molengos, as estradas bifurcadas, a androginia, as cortinas vermelhas divididas em dois, as mentiras sinceras, a malícia angelical, as pernas bambas, os “boa tarde” às sete da noite, as línguas maldosas, as línguas delicadas, os “eu-não-quero-eu-não-sou-e-eu-não-vou” misturados aos palcos, às cadeiras, aos lábios, ao tempo inteiro e o tempo-meio debaixo dos pés e sobre a cabeça. Propondo, calada, o fim ou o começo, o enigma da esfinge, as idéias de Brás Cubas penduradas no trapézio: “decifra-me ou devoro-te”.
Envelhecendo dez anos em vinte dias ainda se é jovem demais para entender (porque sempre se é jovem demais para decifrar qualquer coisa, inclusive a si mesmo).
Quem é que tem medo do lado do vento que sopra?, quem é que tem medo da poeira acumulando nas coisas?, quem é que tem medo do rosto enrugado e das pernas entortando com o tempo passando?, quem é que tem medo das ruas sem luz nas noites de julho?, quem é que tem medo do barulho que faz quando dispara o gatilho?
Quem é que tem medo de não ter medo e acabar morrendo de excesso de paz?

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Limelights

Com as pernas bambas e um tanto rígidas, punha o corpo a subir escadas de êxtase. O peito ansiando, antecipado, sob as roupas pretas, por luzes e sons. Os pés agora descalços sobre a madeira escorregadia, os tecidos escuros a todo o redor regando o lugar com uma escuridão confortável. Pequenos temores a escorrer na espinha enquanto outras pessoas – tão extasiadas quanto, tão descalças quanto – movimentavam-se entre sussurros e braços. Havia cordas ressoando também. E gente do lado de fora. Todos os vários pares de pés nus então ascenderam do chão (escorregadio, tão limpo, quase ferindo estes pés com suas farpas de madeira; e havia música, tanta música do lado de dentro do lado de fora por todos os lados por dentro de todos) pisando agora em superfícies escuras, de plástico, de aço, de medo, de fulgor e então.
Então os olhos abriram-se pela primeira vez em cortinas de fogo e a língua salivou pela primeira vez o gosto de sal e loucura.

terça-feira, 29 de março de 2011

Manifesto


Vou te escrever um manifesto puramente confessional. É somente isso e repleto disso: confesso. Eu lhe confesso que andei soltando umas gotas de água pelos cantos das pálpebras mesmo que nada aqui me entristeça. Eu admito e, principalmente, eu lhe admito e aceito, abaixo a cabeça em um gesto assim compassivo de quem baixou também a guarda e se dá por vencido. Eu lhe manifesto esse pedido confesso – sim, eu confesso – em meio a todos esses amantes seguidores de Afrodite, não-correspondidos, loucos sem juízo, quase todos mulheres, quase todos andróginos, de que não seja nada nunca PROIBIDO, que essa palavra não exista e que haja sossego e que haja também o caos.
E eu também lhe digo que andei pensando e conclui que toda paixão não dá certo – por não consumação, separação ou morte – e que de nada adiantam os amantes seguidores de Afrodite (não-) correspondidos loucos sem juízo, cuja única glória é melhorar olhares alheios (pois não seria isso uma música? “Onde a brasa mora / E devora o breu / Como a chuva molha / O que se escondeu / O seu olhar / Seu olhar melhora / Melhora o meu”).
Eu lhe revelo agora que não possuo nenhuma santa rejeição aos mórbidos ultrarromânticos e seu enorme ego forrado de dor pessoal. E que no entanto não possuo paciência com números, composições ou mapas e que tudo o que se espera esconde-se atrás das janelas (pois não é ali que se retoma “esse momento de mel e sangue (...) essa pequena epifania com corpo e face”?).
Eu lhe confesso a loucura dos marinheiros e das meretrizes, a franqueza dos poetas e dos boêmios, os delírios dos santos e dos artistas; eu lhe confesso as dores do parto e o gozo do mundo, eu lhe rogo catedrais, eu lhe exijo pecados, eu lhe mostro veneno e doçura no pequeno pote de vidro dos meus olhos, eu me confesso, eu lhe admito. Declaro tocado, chafurdado e atolado em sensibilidade o meu próprio íntimo; declaro-me crua de ambições e nem por isso póstuma, confesso-me naufragada no eco da minhas próprias palavras. Confesso-me tanto quanto não deveria. Confesso-me nesse eu-manifesto. Amante seguidora de Afrodite (não-) correspondida. Louca. Sem juízo.

segunda-feira, 21 de março de 2011

O Tempo Singular


Entenda, eu me lembro subitamente agora de canções que eu nunca ouvi, canções estas prevendo revoltas e arrepios na espinha. Aquieto-me com os olhos perdidos (pois me disseram que faço isso o tempo todo) pensando em como é engraçado o curso da roda-viva, que gira feito folhas secas em pequenos redemoinhos de vento do outono. As músicas retornam, a simpatia (e também a apatia) retorna, as peles retornam, os lugares também,
o tempo todo
toda hora
o tempo-hora
todo, todo
o tempo ora.
Há pouco tempo, costumavam execrar-me pelo silêncio dos meus desejos indevidos; agora, a minha presença tranqüila lhes é bem vinda como um pequeno sopro de fim de tarde em suas nucas cansadas. É mesmo irônico e selvagem que quem outrora lhe quis fazer todo tipo de injúria agora lhe estenda os braços de forma afetuosa e agradecida. O que é que o relógio faz, não é mesmo (?). Os meses são todos pequenas-grandes vidas que diferem entre si e o que parecera tão palpável na última terça-feira/22-de-um-mês-qualquer agora é apenas pó na imensa janela do tempo.
Perceba, continuo recebendo esses pequenos presentes ambíguos, essas possibilidades concretas. Mas são também tão imensos que não posso carregar. São sutis frêmitos me atravessando os ossos e a penugem dos braços, porque anseio por tudo tão depressa como se não houvesse outro tempo (e deveras não há, entenda, essa é minha única época e minha fase, singular).
Acredite, eu deveria ser levada mais a sério pelo que não ando dizendo. Tudo o que faço é contar os dias no calendário como nas letras daquelas canções estúpidas - porque é tempo de ansiar e almejar e roer unhas e de ficar respirando “assim, assim” de forma irregular, com os pulmões apreensivos e extasiados, inspirando em intervalos irregulares. É hora de contar as horas e também de esquecer-se delas para que passem velozes como um avião militar, mas ainda assim lentas o suficiente para que possam ser deleitadas. As luzes estão mesmo chegando e eu as quero, eu as quero.
E isso tudo me faz lembrar (mas sem tristeza alguma, como se ela estivesse sendo grata e feliz ao escrever) dos anseios de Virginia Woolf: “Always the love. Always the hours.”

segunda-feira, 14 de março de 2011

Pormenores


Presto atenção nessas coisas mínimas que ninguém mais presta ou dá valor. Dá até uma dorzinha no fundo da alma saber que existe uma quantidade absurda de coisas que estão por aí e ninguém enxerga. Sabe, reparo nas pontuações escondidas no meio das frases e até no meio das palavras soltas. Algumas sílabas possuem vírgulas e certos adjetivos escorrem pela língua de forma tão suave que se esquecem de serem completos e terminam assim: únicos, solos, desprovidos de sujeito ou de verbo.
Sabe, a maioria das pessoas possui a alma pagã e nem sabe disso. Sabe, eu guardei muito estritamente todas as pontuações invisíveis das coisas que você me sussurrou para ter algo pelo qual sorrir nos dias ausentes. Eu percebi uma garota cheirando tulipas como um recém-nascido que cheirasse os seios da mãe em busca de conforto e quis fazer poesia com ela. Eu descobri que poderia estar também cientificamente correta ao dizer que as coisas sujas também poderiam ser belas lendo um desses livros sobre Ciência explicando que o pôr-do-sol só era rosado nas grandes cidades graças à sujeira das ruas. Descubro todas essas coisas minúsculas e vou guardando-as em um espaço reservado do meu cérebro preguiçoso para análise posterior. E que além de tudo eu guardo a imensa maioria dessas coisas pra mim mesma e não conto nada, como se contando eu me expusesse na mais vergonhosa e íntima face, no centro de tudo o que é puramente pessoal, do que eu não quero revelar nem discutir nem dividir. De tudo que é tão pessoal ao ponto de que se fosse dito em voz alta morreria tão instantaneamente aqui dentro quanto o ar que me sai pela boca. Por isso não vou te contar mais nada, com detalhe nenhum, para que todas essas tão particulares e tão reservadas coisas possam continuar respirando, abundantes, deliciosas e pulsantes no meu cerne mais reservado.
São tantos detalhes que não me levam a nenhum outro lugar a não ser aquele (guardado em conforto sob o meu espaço extra-sensorial), como insignificantes e sutis segredos que - o juro! - eu não vou contar, para que continuem esse eterno círculo vicioso de pequenas asas se debatendo em meu estômago.
Os detalhes são tão grandes aqui dentro, você não faz ideia.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Uma Autossabotagem


Tateio cegamente.
Tateio com os olhos vendados e as mãos livres os meus desejos obscuros. Caso não tenha percebido, vou logo dizendo lúcida e sã que o que me cega nasceu comigo como num peculiar defeito de fabricação. Olha só, ando com um medo desesperado dessa minha cegueira. Ela, que me faz mentir para mim mesma e que me assassina toda a beleza. Assim, fico matando todos esses processos mentais e emocionais que vão acontecendo dentro de mim, vou escondendo e maquiando todos esses verbos e substantivos que foram nascendo no meu espaço mais intenso quando estava distraída e à espera de nada. E olha que são verbos e substantivos muito bonitos esses que estão nascendo aqui, dos quais não deveria me envergonhar. Lembram-me até uns versos de Vinicius.
Mas eu continuo me escondendo e você não deveria saber disso. Continuo dizendo que tenho coisas a fazer, que vou chegar tarde, que estou ocupada, que não me deixam, que não me querem, que não posso não posso não posso nunca só porque tenho essa covardia cega tatuada nas córneas e também nas retinas, nos ossos e na mente. Um acovardamento em enxergar as coisas lá fora com um gozo de garoto e um deleite de quem ama. Que faço dessa vontade insana, meu caro cúmplice? Aonde é que devo escondê-la agora que minha cegueira me esclarece demais esses meus processos internos que vão brotando? Espasmos de medo e vontade, espasmos de loucura e fracasso, espasmos de vitória e balanço – resultados de uma autossabotagem.
Mas devo dizer que há qualquer coisa de prazerosa nisso de não pensar com os olhos e apenas ir sentindo as coisas todas sem saber de quê se tratam, de ir tateando aquilo de que se tinha medo de viver, de saber e de tomar forma. Aguardando pacientemente que a coisa pelo qual se busca no escuro esteja parada ali por tempo suficiente para que você tenha tempo para, de fato, conhecê-la em detalhes e minúcias. Fico aqui pedindo desculpas somadas a alguns por favores a mim mesma para que (por-favor, várias vezes) eu não tenha mais medo e desculpe (desculpe mesmo muitas vezes) por ser tão estúpida e esconder-me toda no meio da tralha desimportante da minha própria demência. Talvez eu só tenha todo esse medo porque na verdade não sei como agir com essas coisas que nascem vindas não-sei-de-onde e que vem para não-sei-o-quê. “Como gostar limpo de você no meio desse doente podre louco?” Eu também não sei, também não sei disso e nem de nada porque os meus olhos cegos não me ajudam a saber.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Quase Meio-Dia


Eu não sei o que meu corpo abriga nos últimos tempos. Mentira – até sei. Contudo ele caminha meio sem rumo ou meio rumando para um lugar que eu desconheço, metade medroso, metade curioso (essa curiosidade de mundo-vasto). O meu corpo navega em uma névoa de tempo, pecando tolamente pela dúvida.
É mesmo “quase meio-dia no lado escuro da vida”, está amanhecendo nessa parte um tanto dark, esse lado por onde flutuo distraída e por horas vacilo, escorrego e me arranho inteira. Vou flutuando completamente desconcertada, com ar jovial de aprendiz-iniciante-despreparada de tudo.
O meu corpo metade medo teme a perda da raridade das coisas – raridade de ternura, de certas músicas e de amores – porque acredito acima de tudo que a raridade das coisas as tornam melhores e mais saborosas. E tudo o que eu não quero agora e sempre é que as coisas se tornem gastas.
O meu corpo metade curiosidade não conhece medo, nem ressalva ou privação. E deleita-se na desordem de mim. Novamente essa minha metade indiscreta diverte-se num carrossel cegamente iluminado, ornado de carruagens e cavalos brancos entre inúmeros ipês amarelos de um bosque semi-abandonado. Um carrossel que é unicamente meu.
Olha só minha mão direita se estendo para os espinhos das flores deselegantes pra se arranhar de propósito. Olha só esses meus dedos indo devagar, meio temerosos, com receio do sangue. Olha só esse meu eu buscando, olha só esse meu eu hesitando.
Acostumo-me com os meus próprios pés sobrenadando a bruma da dúvida. E espero pela resolução do tempo, do espírito, do corpo, dos pulmões errantes e dessas mãos curiosas. Dessas mãos docemente irritantes.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Notas Mentais


(querida:)
Nós costumávamos ter uma intimidade absurda, mas em hipótese alguma invasiva. Não invadíamos espaços particulares uma da outra porque simplesmente não havia espaços particulares: entre nós qualquer coisa era pública. Você não escreveu sobre mim. Eu escrevi uma meia dúzia de parágrafos lamentosos sobre o nosso afastamento e só. Escrevi-te como se você tivesse partido (quando na verdade estava só há alguns metros de mim, calada). Eu aprendi a não contar nada a você nem a ninguém.
Até que hoje, depois desse tempo todo, eu resolvi te contar. E, puxa vida, só então percebi que eu sentia realmente muita falta.

-

(eleição do quem sou eu)
Andei pensando em algumas coisas clichês. Nessas frases já repetidas em excesso que começam sempre com aquele termo recorrente: “A vida (...)”.
Pois lá vai: a vida é um jogo de preferências. Estamos sempre escolhendo aquilo de que gostamos mais. De pessoas às cores de caneta. É tempo de preferir.

-

(mudez)
Ando meio rouca também. Vai ver é porque aprendi a gritar (coisa que sempre quis saber fazer). Tenho agora uma garganta que arranha o frio do gelo e do vento, uma garganta que arranha o ar expirado, uma garganta que só arranha, uma garganta que cala, mas também uma garganta feliz por saber estalar e explodir.

-

(olhos de caos)
Eu queria muito poder entender os números. Eles me confundem de certa forma tão absurda que me tiram o gosto. É mesmo muito mais fácil interpretar as coisas ditas (e, em certos casos, as coisas não ditas também) do que entender o mundo em cálculos. Acho que não confio muito em nada que não tenha olhos (porque sim, as palavras tem olhos enormes e indagadores, encarando-nos impiedosa e desafiadoramente, aguardando pela resolução do mistério existente no meio delas, tumultuando-nos entre inúmeras interpretações – e vou te confessar, cá entre nós: adoro essa confusão, adoro o caos das palavras).

-

(resumindo:)
Estive rouca e quase muda. Sem poder falar, andei pensando. Acabei em análises sobre meus gostos particulares. Contei-os para você. No fim, caí novamente nesse abismo solitário das palavras.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Coração de Cinzeiro


Ela era um camaleão e ninguém sabia.
Ninguém sabia exatamente porque ela conseguia se disfarçar com incrível precisão em meio a todos e qualquer um. Em meio ao nada, silenciava-se. Em meio ao falatório e à algazarra, ela conseguia atrair todas as atenções para si com graça e humor. Para os carentes de atenção, dava-lhes os ouvidos. Aos solitários e esquisitos, era também uma figura calada e exótica. Aos extravagantes, um poço de exageros.
Luci vestia máscaras e não percebia. Portanto, corrijo-me: as máscaras é que se vestiam dela. Observava inconscientemente o modo com que determinadas pessoas se portavam em determinados lugares e adquiria inexplicavelmente as mesmas formas, apelos e poses. Era como se tomasse o lugar dos outros sem que percebessem e fazia isso como ninguém.
-
You are the birth and you are waste
You are the one who took my place

Abria os olhos todas as manhãs como um ser cru e desprovido de ambições. Em seguida, ia adquirindo o estado de espírito do ar da manhã: tempestuoso ou quente, nublado ou agradável. Desviava-se com as pernas bambas das poças de lama, mas havia algo nas pessoas ao seu redor que era mesmo muito sujo, fazendo com que seu corpo ansiasse pela imundice e pelo lodo. Então, ela tropeçava e se sentia realmente muito suja, quase obscena, como todos os outros. Luci tinha um coração de cinzeiro, onde todos poderiam depositar as suas cinzas e restos sem que se incomodasse. Ela nunca havia percebido que não possuía identidade até que um dia descobriu que havia um tipo muito particular de beleza que a perturbava. E não se tratavam de metáforas: falo mesmo sobre beleza palpável, de pessoas que possuem qualquer coisa de belo na face. Pessoas muito pálidas e de cabelos muito claros a perturbavam. Descobrira isso andando na rua ao avistar um desses seres que lhe pareciam constantemente iluminados por algum tipo de fulgor particular. Eles o perturbavam de uma forma alucinada. Como se roubassem dela a própria existência quando na verdade era ela quem estava acostumada a roubar um tanto da essência dos outros com seus hábitos-camaleão. Para Luci, toda aquela palidez e claridade em uma mesma pessoa ao longo de todos os fios de cabelo e da pele pareciam-lhe exclamar: “Eu te desafio a pensar. Eu te desafio a continuar perturbando a sua própria cabeça com o que você sente quando me vê. Eu te desafio a me contar." Era algo muito estranho que nem mesmo ela saberia explicar.
E não saberia mesmo explicar porque nunca havia sentido nada que não pertencesse a outra pessoa. Mas aquilo – esse esquisito sentimento de que aquelas pessoas um tanto brilhantes a desafiavam – era a primeira coisa verídica e autêntica que presenciara em toda a sua vida sobre si mesma. Era uma perturbação legítima acerca de pessoas claras demais, que pareciam puras, castas e sempre muito belas. Estupendamente únicas. Não poderia roubar das suas essências para construir a sua própria, ou seja, faziam-na tornar-se nada (nada de camaleão, nada de máscaras, nada de nada). Apenas um amontoado de inquietações.

Protect me from what I want
Protect me, protect me

Então, Luci desejou (pelo mundo, por Deus e pelas próprias pessoas) com unhas, dentes e toda a sua inveja que ela pudesse ser também assim: límpida, brilhante dos cabelos à pele, perturbadoramente bela. Legitimamente ela mesma e a qualquer custo.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Assim, Como Quem Não Quer Nada


Acordei hoje com uma liberdade impura. Dessas que não se costumam falar na frente de estranhos para que não pensem que você é um tipo daqueles. Sabe aquela queimação estranha na garganta que costuma vir quando se come muito chocolate? Exatamente essa. Esse gosto repentino por dizer o que se pensa no exato momento em que o faz ou aquilo que você queria há tempos e ficou ardendo em um canto das suas entranhas e que você finalmente conseguiu abocanhar uma pequena parcela. Ou uma parcela enorme.
Estava eu sentada dentro da lotação, perdida completamente nesses devaneios secretos (sobre algo que envolvia peles e lábios), quando alguém puxa uma palavra comigo para elogiar coisas que eu escrevi. Meu devaneio torna-se quase vergonhoso, como se estivesse gravado nas minhas bochechas – agora coradas -, à bela vista de qualquer um. Esse alguém me julgou “brilhante” e senti o último trecho ainda pálido do meu rosto tornar-se tão vermelho de constrangimento quanto meu cabelo. E eu aprecio muito mesmo quando alguém me diz uma coisa dessas porque enfim pareço útil quando escrevo e alguém se apega aquilo, mas eu estava tão perdida em outro planeta, em outro perdido, em outro lugar, que fui de repente sugada para a terra com uma pergunta feita por essa pessoa ao meu lado na lotação e novamente alçada ao espaço quando recebi o elogio.
“Se você soubesse das liberdades que eu ousei tomar nos últimos tempos.” – pensei. – “Ou só a liberdade do dia de hoje.”
Uma liberdade de garganta, de risos e de seios, de sair por aí espalhando verdades (e também outras coisas muito mais secretas e proibidas) assim como quem não quer nada. Deixo que saibam que ouçam que vejam, eu não me importo que me exclamem censuras porque hoje – ah hoje! - eu não sei o que são censuras nem o que são segredos hoje eu estou rindo de repreensões eu desconheço pudores eu posso falar eu posso tocar eu posso eu posso eu posso ser eu – hoje eu posso ser eu – eu com carne palavras sangue saliva suor seios pernas mãos e cabelos – hoje acordei eu mesma. Hoje eu não sei o que é compostura estou andando descalça e também nua, hoje eu não sei quem eu era eu não sei o que é modéstia hoje eu esqueci de me calar e deixei a lucidez dentro do quarto embaixo da cama junto com as outras chatices de mim. Se há uma coisa que hoje não sou é lúcida (deve ser porque ontem mesmo me gabei de lucidez e o curso das coisas resolveu me pregar uma peça) porque é mesmo muito bom ser inapropriado é mesmo muito bom desistir da decência é mesmo muito bom ser quem se é, ainda que ninguém entenda ainda que ninguém perceba ainda que você nem sempre consiga ser, no mais imaculado (e desvirtuado) sentido da palavra. Palavra, palavra, saborosa palavra – ser, ser, ser: não me canso de você. Hoje eu não me canso de nada.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A Sepultura

Nós caminhamos juntos em meio à multidão esparsa em uma avenida de fevereiro. Eu puxava a sua mão de dedos trêmulos, guiando-te para o fundo da minha própria loucura com os meus braços de insanidade. Eu vestia um vestido branco feito de gaze que se estendia até meus joelhos, com os olhos pintados e borrados de negro mais puro e nos lábios, um vermelho-sangue. Nós andamos ali por um tempo, enquanto eu desviava dos transeuntes o seu corpo desajeitado e aparvalhado de medo. Em certo ponto viramos juntos para a esquerda – o caminho da gente estranha – por um beco cuja solidão apresentava um contraste absurdo à agitação da rua principal. Eu tinha em meus olhos um brilho demoníaco e na boca um ácido gosto de fel e vingança (era isso que te causava tanto pavor porque - tenho certeza - você sabia o que eu estava prestes a fazer).
Nós chegamos juntos (“nós” e “juntos” na mesma frase soa tão irônico agora, não é mesmo?) a um terreno baldio abandonado, cercado de lixo de todas as origens, esgoto e pequenos animais mortos. Puxando ainda a sua mão frouxa, eu o levei até o centro daquele espaço. Nós dois observamos a espécie de túnel que eu havia cavado ali, no meio de toda aquela imundice – eu, com um sorriso cruel; você, com um pânico semi-disfarçado. Eu te fiz entrar comigo naquele buraco terrivelmente cavado, engatinhando feito duas crianças brincando em um parque de diversões (a excepcional diferença era que eu era a única criança ali com um brinquedo, um parque e uma diversão). Nós nos arrastamos até o subsolo mais fundo, até o mais profundo monte de lama que eu outrora havia conseguido cavar. Ao chegarmos lá, o seu corpo deitou-se, exausto e incapaz. Lá estava você e o seu ego imponente, sua sujeira tremenda, sua estupidez exposta, e tudo o que havia de mais indigno e baixo em seu espírito estendido no meio da terra. Foi quando eu saquei meu punhal.
Primeiro, eu apunhalei a tua língua, para que esta não mais pudesse ser regada com seus pensamentos sórdidos. Depois, eu feri o teu ventre, para que não pudesse nascer nada de ti (nada mais desprezível, nada mais abominável). Golpeei também os teus pés, para que você não pudesse sair dali nunca mais. Por último, eu apunhalei o teu peito, para assistir o teu ego inflado e grandioso murchar, findar e sumir diante de meus olhos triunfantes.
Um trecho célebre veio a minha mente naquele momento, enquanto observava o seu último suspiro agonizante (deus!, havia tanto tanto sangue).

Morrer — dormir, nada mais; e dizer que pelo sono se findam as dores, como os mil abalos inerentes à carne — é a conclusão que devemos buscar. Morrer — dormir; dormir, talvez sonhar.”
Era isso. Eu queria matá-lo para que você não pudesse (nunca, nunca mais) sonhar. Era por isso que eu havia cavado, com tanta loucura e demência, com tudo o que havia de mais cruel e desumano em mim, a sua sepultura. Não te parece doce o seu próprio sepulcro? O seu, a mim, pareceu. Com a mais pura e casta maldade de meu coração desgastado. Morrer? Dormir? Talvez sonhar? Eu respondo por você: morrer.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Céu de Baunilha


Meus dois C’s, queridos C’s: Caio e Clarice. Vocês me contam sobre os seus carnavais da infância em Recife, das praias repletas de gente feliz e eu, neste ano, que nem cheguei perto do cheiro do mar. Ultimamente ando sentindo apenas dois perfumes, como se só existissem estes no mundo, de duas pessoas distintas, em todo o lugar: no meu sofá, na calçada da avenida, dentro da lotação, no pátio da escola, dentro dos livros. Estes perfumes de canto de pescoço que somente senti e não provei, que me abraçaram de costas e me adoraram quando pus riso nos lábios, que sujaram meus dedos com um doce pegajoso e me iluminaram com a mistura do branco com azul.
Nenhum deles sabe como é estranho estar entre iguais, em meio a pessoas rindo na sua nuca sobre coisas que você não ouviu porque estava preocupado demais com um texto muito bonito que você acabara de descobrir colado em algum papel vermelho e que lhe aquietou o espírito.
Meus queridos, banhados em confete, purpurina e serpentina, vocês podem me escutar, por favor? Essa gente anda sorrindo demais (e eu não sei para quem), essa gente anda lendo demais (e eu não sei o quê), essa gente anda planejando demais (e eu não sei para onde). Eles não sabem que quando os meus olhos pousam, serenos, sobre os deles, estou arquitetando friamente a forma mais digna de exclamar: “EU-TE-ODEIO”. Porque as pessoas para as quais eu exclamaria “eu-te-amo” estão todas caladas há dois ou três cômodos do meu, caladas há três ou quarto bairros daqui, há duzentos ou três quilômetros, há uma ou outra vida - como vocês. Meus queridos, será que eles não poderiam simplesmente perceber quem são?
E olha só – acabo de descobrir meio bombom na mesa ao lado (as coisas comigo são mesmo muito engraçadas quando estou meio azeda). Até ele cheira a perfume de gente. Ou seria o meu próprio nariz, mergulhado em sonho e sono, afundado no tempo-espaço descontínuo, que sente em tudo o mesmo aroma com o qual se acostumara? Com as mãos trançadas sobre o ventre morno e os dedos sujos de chocolate (outra vez), observo o céu de baunilha de Monet. Meus queridos, vocês também viam o céu nesta cor rosada/amarelada feito um domingo no litoral? Está tudo tão rosado e eu só queria que tudo fosse cinza, cinza, meus queridos, cinza como as nuvens no inverno.
Por quê mesmo estou escrevendo? Ah, sim. Porque não vi o mar. Porque há pessoas me cuspindo a poeira do mundo. Porque o meu céu tem uma cor esquisita e a gente embaixo dele está se corrompendo e expondo seus vícios (e também os meus) em faixas megalomaníacas. E também porque vocês sabem – e só vocês – como é que funciona essa coisa toda de respirar, não saber como o resto da vida funciona e ainda assim ter a audácia de escrever sobre isso. Meus queridos, vocês poderiam me ensinar a engolir a porcaria dos outros e a minha própria porcaria misturada aos desejos dos outros e aos meus próprios desejos?
Um fim abrupto para não me estender aonde não devo. Era só isso mesmo que eu queria dizer e perguntar. Sem Post Scriptum nem nada.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Creature of the Night


Um monstrengo capengo e farto, débil e corrompido. Consternado da própria aparência, envergonhado das carnes porcamente costuradas por uma mão destreinada. Era isso o que ele era.
Um decrépito senhor de muita idade era belo, ele – a face bruta e corroída de Lúcifer. Com os lábios trêmulos escondia-se, parvo, por entre as árvores para que não estragasse a beleza pura da luz com o seu reflexo grotesco.
Cansava-se da mata, da neblina e do silêncio. A criatura torta desejava lançar-se à besta-fera do mundo, com seus olhos maníacos e sua força descomunal. A bússola em seu bolso livrava-o das multidões, soturno e sorrateiro. Anônimo. Com o reprimido desejo de contato humano e o receio de ser repelido, ele observava a aldeia como um curioso observando uma colméia. As casas de aspecto simples e modesto eram um contraste gritante à sua aparência. A sua figura sombria se encaixaria mais apropriadamente ao pano de fundo de construções góticas e castelos medievais marcados pelo musgo e pelo tempo.
Ele aguardou por meses um sinal de que as abelhas humanas pudessem não odiá-lo ou sentir-lhe nojo. Mas eles eram todos graciosos e encantadores: o garoto do carrinho de rolimã, a garota dos cabelos dourados, o homem do chapéu-coco e, acima de todos, a mulher do cesto de frutas, com suas bochechas coradas e cintura contida. A face horrenda da criatura iluminava-se em um sorriso grotesco ao observá-la. Ele tinha medo, mas acima de tudo, anseio. Decidido a vê-la de perto (talvez tocá-la, talvez talvez), aguardou que anoitecesse a escuridão mais fria. Deixou a mata em direção à pequena casa de madeira onde a moça deitava-se sozinha todos os dias.
O monstrengo estendeu suas mãos brutas para a maçaneta. Os seus cotovelos rotos empurraram a porta. Os seus pés nocivos adentraram o piso gelado. A moça do cesto de frutas virou-se ao ouvir o rangido da dobradiça. E por um momento – em que ela e a criatura se encararam – ele observou-a como um mortal que admirasse um arcanjo. Ele observou-a olhá-lo com seus olhos aterrorizados, liquidando e ao mesmo tempo expondo toda a sua monstruosidade. Olhando-o como se ele pecasse por achar-lhe bela, por ser grotesco, por respirar, como se fosse um morcego, um sub-humano. A sua retina o amaldiçoou pela eternidade enquanto seus lábios rosados abriam-se prontos para gritar e avisar à aldeia e ao mundo que havia uma anomalia em sua sala.
Ela deixou o cesto cair dos seus braços em direção ao chão. O primeiro pêssego amarelado rolou em direção aos pés da figura grosseira e a criatura o apanhou com os dedos torpes. Ao pô-lo na boca, aguardou o sabor doce. No entanto, se lembrou: suas papilas gustativas de sub-humano não serviam para nada. Lembrou-se também que não adiantaria tocá-la, pois as suas mãos ásperas não o deixariam sentir a maciez das maças do rosto e, no mínimo, a moça-do-cesto-de-frutos acabaria enlouquecida de pavor e fincaria as suas unhas compridas no ombro do monstrengo até que ele se machucasse e vertesse o seu sangue sujo. E ele não queria contaminá-la com seu sangue sujo. Caiu em si. Com o soar dos gritos estridentes da moça, a figura horripilante agarrou a bússola em seu bolso – um lembrete. Ele virou-se para a porta, correndo. Em direção norte, segundo a bússola. Norte, sempre norte.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Sonetos


Esperei as palavras que não vieram sob um céu nebuloso de madrugada. Esperei escondendo-me atrás de uma xícara branca de café doce, com escuras pálpebras sonolentas embaixo dos meus olhos catalisadores. Eu tive medo da acidez da minha própria língua e da rigidez dos meus ossos. Eu temi as suas feições dramáticas extinguindo tudo o que eu era com estes olhos inquietos. Eu – o verme com funções de gueixa, o seu caso perdido – adormeci às seis da manhã para fugir do calor. Adormeci à espera de uma intervenção divina em forma de bilhete, respondendo que coisa era essa que parecia uma epifania, mas que não tinha nome, não tinha cor, não tinha cheiro, só alguns pensamentos desalinhados aqui e ali.
As coisas estavam mesmo muito doces, você não acha? O meu teto estava muito firme, não é mesmo? Eu era igual a todas as outras pessoas, sim? Eu não era? Você lembra como eu costumava abrir a boca o tempo todo e pôr as mãos com os punhos fechados sobre os meus lábios, ansiando por um santo de porcelana?
Essas coisas doces deixaram nos meus pés algumas saudades, algumas vergonhas, uma fita de vídeo de um filme em preto-branco-rosa sobre aves de pescoços longos, moças encantadoras e volúpia. Bilhete com resposta para aquela pergunta (“que sentir é esse? sem nome, sem cor, só reflexos”) não veio nenhum.
As coisas sujas e as belas são as mesmas – elas apenas se escondem - e vieram até mim, nessa hora estranha de um tempo incerto. Eu apenas não sei os seus nomes. Coisas belas e sujas tem nomes? Ou a beleza (suja) só existe porque vive uma vida secreta e anônima em que ninguém sabe a sua verdadeira face e, portanto, quando aparece, é isso: você não sabe o que é aquilo (tão lindo e incompreensível) e espera um lembrete divino com explicações?
Entretanto, o bilhete não vem. Porque a minha janela é pequena demais para o seu Deus entrar.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Esquina


Corro agora na mesma rua que outrora eu me encolhi. Você também consegue ouvir as pessoas sussurrando pelas nossas costas nesse caminho mal iluminado as coisas que nós não queremos ouvir? Você consegue ignorar as vozes que cochicham no nosso encalço as coisas que estamos cansados de saber? Eu tenho uma paixão tola por caminhar em lugares vazios, mas estes estão todos ocupados com gente que não sabe silenciar (e eu tenho medo).
O cheiro de vinho na taça dos outros (que bebem nos cantos da rua porque, afinal, o amanhã não importa) me faz salivar e de alguma forma me clareia os olhos para os seus rostos bonitos e para o meu próprio corpo cansado, erguido do chão, jogado no espaço, regado em suor.
Tenho aprendido a me orgulhar, a ceder espaço, a cantar baixinho no escuro do quarto com todo o resto da rua a dormir. Porém agora ela não dorme e me persegue, fria e insólita. As esquinas do meu roteiro cotidiano sussurram: “cante o que não dá pra falar, cante o que não dá pra gritar...”. Então eu corro - da ansiedade do próximo mês, dos cochichos sombrios, do medo e também do alívio, da rua, da rua.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Sala de Estar


O açúcar que faz as formigas se espalharem sobre a toalha da mesa. A voz grave que eu não sei propagar sobre o grande espaço. A poeira erguida sob os pés caminhando na madeira. Essas coisas todas dos cantos do mundo. A tristeza sua que eu não sei curar. A felicidade minha que só sei alentar e que seja!, pois o resto é resto e por isso, é tudo. Os meus hábitos de não dar finalidade às coisas, de não saber detalhar, de não saber planejar misturados aos ruídos da sala de estar. Eis o retrato de uma tarde. As combinações de um futuro próximo em uma conversa ao telefone: “eu não tenho dias livres, eu não tenho tempo, eu tenho saudades, eu tenho um sabor salgado...”.
Procuro tempo e acho gasto. Tenho erros para corrigir. Eu tenho palavras para decorar. E espero que parem de roubar as minhas letras, esperaria sentada em um amontoado de folhas secas se o outono não estivesse distante, assim como esperaria com minhas pernas molhadas e minhas roupas encharcadas em um tempo de chuva.
Eu roubei paz com minhas frases e não sei devolver. Machuquei minha própria garganta na tentativa de restaurá-la, tentando gritar (não sei fazer isso direito), tentando explicar. As cordas vocais tentaram dizer chega, mas eu as fiz sangrar.
E mais um som se mistura aos sons da sala de estar porque algum vizinho de bom gosto escuta uma bela música de algum compositor boêmio de alguma cidade litorânea do país desta que vos escreve, em alto e intenso volume, regando-me os ouvidos e essa coisa que chamam de alma, essa coisa que chamam de humor, com essa coisa que chamo de paz. Esta sala de estar iluminada me lembra outra sala – essa outra escura, quente e alta – na qual um dia fui convidada a entrar. Não havia música, só duas vozes. Não havia amor nenhum, só um carinho imenso, uma coisa meio “ah, se você fosse (segue-se uma pequena lista de quatro itens de características específicas) assim e se eu não amasse outrem, nós poderíamos...”.
Nós não poderíamos nada naquele tempo. E eu não posso nada agora, sentada em minha sala de estar na minha última meia hora livre do dia, deleitando-me nessa canção suave, nessa poeira de recordação que a janela deixa entrar. Eu não posso nada porque também sou poeira e também sou canção e também sou a própria sala de estar e a sua entrega e a sua essência e o seu minguar.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Ímpar-Par


Há um par de olhos pedintes pousando nos meus e implorando por aceitação tanto quanto os meus, há um par de olhos satisfeitos descansando nos meus e desejando conforto tanto quanto os meus.
Vou te contar um segredo: já amei estes olhos. Por um tempo. Os adorei em silêncio, em parcial sigilo, em suave desespero. Compus odes, escrevi em longos tecidos, esqueci de mim. Eu esqueci por um segundo – este segundo, o dos olhos pedintes – de que não sentia mais aquilo porque tudo voltou num redemoinho e desapareceu da mesma forma que veio. Só percebo agora, sentada nessa cadeira de madeira (na garganta, um gosto de manga), buscando na mente um ou dois nanossegundos em que isso foi concreto. Aquele microssegundo em que eu ainda te amava e, logo depois, não amava mais outra vez. A terceira vez.
Eu me calo para poder escrever sobre os silêncios. Eu transpiro para recuperar a minha liberdade decaída (mas não - eu não tenho sede). Faço todas essas coisas para continuar meus passos e para nunca cair nesta de “olhos pedintes” de novo e somente poder dar certo sem mais dores de cabeça, sem anseio, sem nada. Para que ninguém – nem mesmo eu, muito menos você – se perturbe.
Adquiri essa mania de erguer os dedos em um sinal de assentimento e uma sobrancelha erguida em sarcasmo para evitar maiores irritações com quem quer que seja. Uma forma estranha de autodefesa. É uma coisa esquisita essa, de sentir as coisas. A gente sempre acaba matando tudo aquilo que é belo.