terça-feira, 29 de março de 2011

Manifesto


Vou te escrever um manifesto puramente confessional. É somente isso e repleto disso: confesso. Eu lhe confesso que andei soltando umas gotas de água pelos cantos das pálpebras mesmo que nada aqui me entristeça. Eu admito e, principalmente, eu lhe admito e aceito, abaixo a cabeça em um gesto assim compassivo de quem baixou também a guarda e se dá por vencido. Eu lhe manifesto esse pedido confesso – sim, eu confesso – em meio a todos esses amantes seguidores de Afrodite, não-correspondidos, loucos sem juízo, quase todos mulheres, quase todos andróginos, de que não seja nada nunca PROIBIDO, que essa palavra não exista e que haja sossego e que haja também o caos.
E eu também lhe digo que andei pensando e conclui que toda paixão não dá certo – por não consumação, separação ou morte – e que de nada adiantam os amantes seguidores de Afrodite (não-) correspondidos loucos sem juízo, cuja única glória é melhorar olhares alheios (pois não seria isso uma música? “Onde a brasa mora / E devora o breu / Como a chuva molha / O que se escondeu / O seu olhar / Seu olhar melhora / Melhora o meu”).
Eu lhe revelo agora que não possuo nenhuma santa rejeição aos mórbidos ultrarromânticos e seu enorme ego forrado de dor pessoal. E que no entanto não possuo paciência com números, composições ou mapas e que tudo o que se espera esconde-se atrás das janelas (pois não é ali que se retoma “esse momento de mel e sangue (...) essa pequena epifania com corpo e face”?).
Eu lhe confesso a loucura dos marinheiros e das meretrizes, a franqueza dos poetas e dos boêmios, os delírios dos santos e dos artistas; eu lhe confesso as dores do parto e o gozo do mundo, eu lhe rogo catedrais, eu lhe exijo pecados, eu lhe mostro veneno e doçura no pequeno pote de vidro dos meus olhos, eu me confesso, eu lhe admito. Declaro tocado, chafurdado e atolado em sensibilidade o meu próprio íntimo; declaro-me crua de ambições e nem por isso póstuma, confesso-me naufragada no eco da minhas próprias palavras. Confesso-me tanto quanto não deveria. Confesso-me nesse eu-manifesto. Amante seguidora de Afrodite (não-) correspondida. Louca. Sem juízo.

segunda-feira, 21 de março de 2011

O Tempo Singular


Entenda, eu me lembro subitamente agora de canções que eu nunca ouvi, canções estas prevendo revoltas e arrepios na espinha. Aquieto-me com os olhos perdidos (pois me disseram que faço isso o tempo todo) pensando em como é engraçado o curso da roda-viva, que gira feito folhas secas em pequenos redemoinhos de vento do outono. As músicas retornam, a simpatia (e também a apatia) retorna, as peles retornam, os lugares também,
o tempo todo
toda hora
o tempo-hora
todo, todo
o tempo ora.
Há pouco tempo, costumavam execrar-me pelo silêncio dos meus desejos indevidos; agora, a minha presença tranqüila lhes é bem vinda como um pequeno sopro de fim de tarde em suas nucas cansadas. É mesmo irônico e selvagem que quem outrora lhe quis fazer todo tipo de injúria agora lhe estenda os braços de forma afetuosa e agradecida. O que é que o relógio faz, não é mesmo (?). Os meses são todos pequenas-grandes vidas que diferem entre si e o que parecera tão palpável na última terça-feira/22-de-um-mês-qualquer agora é apenas pó na imensa janela do tempo.
Perceba, continuo recebendo esses pequenos presentes ambíguos, essas possibilidades concretas. Mas são também tão imensos que não posso carregar. São sutis frêmitos me atravessando os ossos e a penugem dos braços, porque anseio por tudo tão depressa como se não houvesse outro tempo (e deveras não há, entenda, essa é minha única época e minha fase, singular).
Acredite, eu deveria ser levada mais a sério pelo que não ando dizendo. Tudo o que faço é contar os dias no calendário como nas letras daquelas canções estúpidas - porque é tempo de ansiar e almejar e roer unhas e de ficar respirando “assim, assim” de forma irregular, com os pulmões apreensivos e extasiados, inspirando em intervalos irregulares. É hora de contar as horas e também de esquecer-se delas para que passem velozes como um avião militar, mas ainda assim lentas o suficiente para que possam ser deleitadas. As luzes estão mesmo chegando e eu as quero, eu as quero.
E isso tudo me faz lembrar (mas sem tristeza alguma, como se ela estivesse sendo grata e feliz ao escrever) dos anseios de Virginia Woolf: “Always the love. Always the hours.”

segunda-feira, 14 de março de 2011

Pormenores


Presto atenção nessas coisas mínimas que ninguém mais presta ou dá valor. Dá até uma dorzinha no fundo da alma saber que existe uma quantidade absurda de coisas que estão por aí e ninguém enxerga. Sabe, reparo nas pontuações escondidas no meio das frases e até no meio das palavras soltas. Algumas sílabas possuem vírgulas e certos adjetivos escorrem pela língua de forma tão suave que se esquecem de serem completos e terminam assim: únicos, solos, desprovidos de sujeito ou de verbo.
Sabe, a maioria das pessoas possui a alma pagã e nem sabe disso. Sabe, eu guardei muito estritamente todas as pontuações invisíveis das coisas que você me sussurrou para ter algo pelo qual sorrir nos dias ausentes. Eu percebi uma garota cheirando tulipas como um recém-nascido que cheirasse os seios da mãe em busca de conforto e quis fazer poesia com ela. Eu descobri que poderia estar também cientificamente correta ao dizer que as coisas sujas também poderiam ser belas lendo um desses livros sobre Ciência explicando que o pôr-do-sol só era rosado nas grandes cidades graças à sujeira das ruas. Descubro todas essas coisas minúsculas e vou guardando-as em um espaço reservado do meu cérebro preguiçoso para análise posterior. E que além de tudo eu guardo a imensa maioria dessas coisas pra mim mesma e não conto nada, como se contando eu me expusesse na mais vergonhosa e íntima face, no centro de tudo o que é puramente pessoal, do que eu não quero revelar nem discutir nem dividir. De tudo que é tão pessoal ao ponto de que se fosse dito em voz alta morreria tão instantaneamente aqui dentro quanto o ar que me sai pela boca. Por isso não vou te contar mais nada, com detalhe nenhum, para que todas essas tão particulares e tão reservadas coisas possam continuar respirando, abundantes, deliciosas e pulsantes no meu cerne mais reservado.
São tantos detalhes que não me levam a nenhum outro lugar a não ser aquele (guardado em conforto sob o meu espaço extra-sensorial), como insignificantes e sutis segredos que - o juro! - eu não vou contar, para que continuem esse eterno círculo vicioso de pequenas asas se debatendo em meu estômago.
Os detalhes são tão grandes aqui dentro, você não faz ideia.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Uma Autossabotagem


Tateio cegamente.
Tateio com os olhos vendados e as mãos livres os meus desejos obscuros. Caso não tenha percebido, vou logo dizendo lúcida e sã que o que me cega nasceu comigo como num peculiar defeito de fabricação. Olha só, ando com um medo desesperado dessa minha cegueira. Ela, que me faz mentir para mim mesma e que me assassina toda a beleza. Assim, fico matando todos esses processos mentais e emocionais que vão acontecendo dentro de mim, vou escondendo e maquiando todos esses verbos e substantivos que foram nascendo no meu espaço mais intenso quando estava distraída e à espera de nada. E olha que são verbos e substantivos muito bonitos esses que estão nascendo aqui, dos quais não deveria me envergonhar. Lembram-me até uns versos de Vinicius.
Mas eu continuo me escondendo e você não deveria saber disso. Continuo dizendo que tenho coisas a fazer, que vou chegar tarde, que estou ocupada, que não me deixam, que não me querem, que não posso não posso não posso nunca só porque tenho essa covardia cega tatuada nas córneas e também nas retinas, nos ossos e na mente. Um acovardamento em enxergar as coisas lá fora com um gozo de garoto e um deleite de quem ama. Que faço dessa vontade insana, meu caro cúmplice? Aonde é que devo escondê-la agora que minha cegueira me esclarece demais esses meus processos internos que vão brotando? Espasmos de medo e vontade, espasmos de loucura e fracasso, espasmos de vitória e balanço – resultados de uma autossabotagem.
Mas devo dizer que há qualquer coisa de prazerosa nisso de não pensar com os olhos e apenas ir sentindo as coisas todas sem saber de quê se tratam, de ir tateando aquilo de que se tinha medo de viver, de saber e de tomar forma. Aguardando pacientemente que a coisa pelo qual se busca no escuro esteja parada ali por tempo suficiente para que você tenha tempo para, de fato, conhecê-la em detalhes e minúcias. Fico aqui pedindo desculpas somadas a alguns por favores a mim mesma para que (por-favor, várias vezes) eu não tenha mais medo e desculpe (desculpe mesmo muitas vezes) por ser tão estúpida e esconder-me toda no meio da tralha desimportante da minha própria demência. Talvez eu só tenha todo esse medo porque na verdade não sei como agir com essas coisas que nascem vindas não-sei-de-onde e que vem para não-sei-o-quê. “Como gostar limpo de você no meio desse doente podre louco?” Eu também não sei, também não sei disso e nem de nada porque os meus olhos cegos não me ajudam a saber.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Quase Meio-Dia


Eu não sei o que meu corpo abriga nos últimos tempos. Mentira – até sei. Contudo ele caminha meio sem rumo ou meio rumando para um lugar que eu desconheço, metade medroso, metade curioso (essa curiosidade de mundo-vasto). O meu corpo navega em uma névoa de tempo, pecando tolamente pela dúvida.
É mesmo “quase meio-dia no lado escuro da vida”, está amanhecendo nessa parte um tanto dark, esse lado por onde flutuo distraída e por horas vacilo, escorrego e me arranho inteira. Vou flutuando completamente desconcertada, com ar jovial de aprendiz-iniciante-despreparada de tudo.
O meu corpo metade medo teme a perda da raridade das coisas – raridade de ternura, de certas músicas e de amores – porque acredito acima de tudo que a raridade das coisas as tornam melhores e mais saborosas. E tudo o que eu não quero agora e sempre é que as coisas se tornem gastas.
O meu corpo metade curiosidade não conhece medo, nem ressalva ou privação. E deleita-se na desordem de mim. Novamente essa minha metade indiscreta diverte-se num carrossel cegamente iluminado, ornado de carruagens e cavalos brancos entre inúmeros ipês amarelos de um bosque semi-abandonado. Um carrossel que é unicamente meu.
Olha só minha mão direita se estendo para os espinhos das flores deselegantes pra se arranhar de propósito. Olha só esses meus dedos indo devagar, meio temerosos, com receio do sangue. Olha só esse meu eu buscando, olha só esse meu eu hesitando.
Acostumo-me com os meus próprios pés sobrenadando a bruma da dúvida. E espero pela resolução do tempo, do espírito, do corpo, dos pulmões errantes e dessas mãos curiosas. Dessas mãos docemente irritantes.