quarta-feira, 25 de maio de 2011

Aqueles que Eu Escrevi (El Tango de Roxanne)


Guardei todas as minhas melhores palavras tão bem escondidas que não posso achá-las por mim mesma. Continuo a procurar respostas à altura do que você me sussurra e eu não as encontro, aí então, fico ouvindo El Tango de Roxanne enquanto ando pelas ruas, pensando que Roxanne “não deveria colocar-se sob as luzes vermelhas” assim como eu, talvez, não devesse me colocar sob essas luzes de cor âmbar, azul e igualmente vermelhas e que talvez eu devesse continuar assim no meu canto (sempre como quem não quer nada, não ouve nada, não sente nada) tentando decifrar onde é que estão as coisas que eu queria te dizer.
Mas então eu volto a pensar que se não houvesse cá dentro esse gosto pelas luzes de cor âmbar, azul e vermelha não haveria palavras se escondendo, não haveria sussurros, não haveria você. Eu não teria previsto a sua chegada com um dia de antecedência em uma sexta-feira de fevereiro. Escrevi sobre você antes que você viesse, antes que eu fosse até você, antes, antes, pouco antes. E não me refiro aqui a esses casos transcendentais-espirituais-cósmicos de adivinhação porque – sabe bem, essas coisas não fazem a minha linha – apenas vou dizendo que, bem, eu previ mesmo isso tudo (era fevereiro, eu me lembro, sexta-feira de madrugada que escrevi, havia sido um dia livre, havia sido um dia em que fui eu mesma - eu me lembro que escrevi tão feliz que era eu mesma e que esse eu mesma envolvia você, embora eu ainda não o conhecesse) e então no outro dia você veio. Chegou em um sábado, na madrugada seguinte. Tão livre, sob a luz fraca, na frente dos meus olhos turvos, todas aquelas coisas que eu havia previsto sem saber que o fizera.
Em uma língua que eu considero esquisita, El Tango de Roxanne ainda toca. Eu apenas não sei dançá-lo, mas eu o entendo perfeitamente agora; agora que eu encontrei as palavras que eu queria dizer – e que ele também diz.

And please, believe me when I say…

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Os Versos Que Eu Não Escrevi


Me visto com o manto de todos os meus santos pecados. Meus erros em vermelho como todas as pessoas que amei.
Agora eu me sento e espero: ainda é manhã de segunda-feira.
Porque o passado e o presente vão se misturando em histórias que você me conta, que nós vivemos, que eu costumava amar, enquanto o coração se desmonta e retorna a consertar por si só. E é selvagem, essa violência que escondo no espaço mínimo entre as unhas e a carne; é solitária, essa esquina que eu cruzei a esperar; é suado, esse veneno de espera, esse brinde não consumado de vingança não cumprida.
Tudo isso apenas porque há tanto medo de se parecer piegas-romântico-conquistador-barato que se acaba virando essa coisa bruta, essa coisa com as mãos sujas de terra e de suor, essa coisa que cala e que não diz o que sente. Essa coisa que não é suficiente. Essa coisa que também sou eu.
Por isso vou te dizendo que ando procurando uns versos de Vinicius de Moraes, de Fernando Pessoa, do Chico Buarque, dos concretistas, dos ultra-românticos, dos nada românticos também, do Cazuza, de Ferreira Gullar, ando procurando nos versos de Bertolucci com a câmera, de Mario Quintana, da Cecília Meirelles, de Drummond, de Paulo Leminski, de Edgar Allan Poe e também de Shakespeare, do Pablo Neruda, do Renato Russo, do Morrissey e da Marisa Monte, procurei também pelo Rimbaud e pela Rachel de Queiroz só pra falar aquelas coisas que eu não sei, só pra te contar de mim, só pra te dizer que.
Só pra dizer que.
Pra dizer que--
Só pra dizer.
Que--
Só.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Vestido de Noiva


(just a little bit of sweet, old and foolish love; another story about deception)

Marieta estava bela como nunca. Os cabelos negros e longos atados em uma fita de cetim branca como a cor do seu vestido. Era uma peça sem alças ou mangas, com uma longa cauda ressaltando o seu belo corpo cheio. Experimentava-o por puro prazer. Sem jóias ou maquiagem - uma beleza limpa. Olhava-se no espelho com certo carinho e o espelho retribuía-lhe a imagem da flor da idade. Dezessete anos e um grande sonho: um dia entrar na igreja com este vestido costurado pelas próprias mãos.
Era década de 40 e as garotas ainda esperavam ser cortejadas por um cavalheiro que passasse pela janela ou por um charmoso estranho na fila do cinema. O estranho de Marieta, entretanto, possuía nome: Abel. Cabelos castanhos penteados com escovinha, suéter xadrez, sapatos lustrados. Suspiros no coração da menina. Conhecia-o pelas sessões de cinema - ambos eram apaixonados pelos clássicos americanos e sempre podiam ser vistos na fila de ingressos. Do ponto de vista dela, já haviam se cortejado entre olhares. Certa vez, recordou ela, Abel pareceu até mesmo piscar para ela com o olho direito e sorrir-lhe de um jeito cativante e quieto que a amoleceu os ossos feito gelatina.
Ainda não haviam trocado uma palavra sequer quando Marieta decidiu ter a prova concreta de que era correspondida. Naquela (até então) doce sexta-feira, decidira ir ao cinema com um belo lenço de seda de sua mãe e, displicentemente, deixá-lo cair aos pés do rapaz. Caso ele o pegasse e iniciasse conversa, estava certa: o encantamento era mútuo! Arrumou-se no seu vestido estampado cor-de-lilás, a mente entretida em imaginar-se em seu casamento (o vestido que tanto estimava, Abel a aguardá-la no altar com um sorriso no rosto).
Emaranhada nestes pensamentos, chegou ao cinema radiante. Logo no meio da fila de ingressos, viu-o, belo e vistoso, vestido em azul-marinho. Marieta aproximou-se com o lenço nas mãos e um sorriso no rosto. No exato instante em que seu dedo indicador soltou-se do lenço, alguém precipitou em direção a Abel e deu-lhe um cuidadoso beijo apaixonado. Ao virar o rosto, Marieta pôde ver quem era: Lúcia, sua melhor amiga. Ambos não a viram virar de costas e partir, enxugando lágrimas com o lenço que outrora representou felicidade.
Marieta foi para casa, seu coração um caos de cacos. Fez as malas, guardou tudo, deixando apenas o estimado vestido. Saiu de casa sorrateira com a bagagem, sem que sua mãe Marinildes visse. No portão, deixou um anúncio. Na mente, a decisão de fugir da pequena cidade de Esperança, pois desta não lhe restara nada. No anúncio, deixado no portão, vendia seus sonhos por uma barganha:
"Vende-se um vestido de noiva, manequim 46, sem uso, tratar com Marinildes - tel..."

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Moscas


"De repente Dona Carolina deixou cair o garfo e soltou um grunhido. Todos se precipitaram para ela, abandonando seus lugares à mesa: a filha, o genro, os netos:
- Que foi, mamãe?
- Dona Carolina, a senhora está sentindo alguma coisa?
- Fala conosco, vovó?
A velha porém só fazia arranhar a garganta com sons estrangulados, a boca aberta, os olhos revirados para cima.”

(Espinha de Peixe – Fernando Sabino)


A imagem grotesca da velha com a face retorcida em esgar trouxe a todos os arrepios do medo. Da morte, da surpresa, do desconhecido, das coisas horrendas? Seria isso, de fato, caso tratássemos aqui de pessoas com certo padrão moral. Todo o clã dos Sousa Galvão reunido para o jantar da sexta-feira santa, entupindo as entranhas com o maravilhoso (“delícia de bacalhau!”) prato preparado pela matriarca. Aparentemente, uma típica família burguesa dos bairros de classe média do Rio de Janeiro. Dessas em que todos se reúnem aos domingos, a avó é uma viúva rancorosa e os pais estão sempre atarefados demais atrás de dinheiro para notar a ociosa vida dos filhos. Mas, como já disse outrora, a moral era apenas aparente. O verdadeiro medo que permeou de frêmitos a espinha de toda a descendência de Dona Carolina estava atado a um pulsante fio de satisfação. E esse fio estava atado a outro, o da desconfiança.
Pois bem, eis um fato: todos ali odiavam a velha com toda a dedicação. Era amarga, cínica e fazia questão de espalhar a todos o seu rancor mais íntimo. Ralhava com os netos a todo o momento, pressionava exasperadamente os filhos e aos genros vivia a atormentar com farpas e humilhações. O primeiro sentimento que assolou a todos – o medo – foi o de que alguém houvesse posto veneno na comida de Dona Carolina e, então, que todos se tornassem suspeitos do assassinato. O fio de satisfação que pulsou em todos, no entanto, é óbvio. Somente a vaga sensação de que ela e toda a sua animosidade pudessem vir a terminar logo ali enchia a todos com uma sensação repleta de otimismo (“Poderia sim ser o fim da amargura desta velha que abate a família por todos esses anos”, pensou um dos netos). E o último fio, o da desconfiança, surgiu ao passo que, cada um sabendo que não havia planejado a morte da velha, começou a desconfiar um do outro, imaginando quem finalmente havia tido coragem para pôr um fim a ela.
Foi então que Dona Carolina, entre tosses e acessos agonizantes de soluço, inclinou-se sobre o próprio corpo com certa agressividade e finalmente expeliu o motivo daquele caos de poucos minutos: uma pequena (e nem por isso menos incômoda) espinha de peixe. Ela continuou em sua posição fatigada por algum tempo. Tempo este em que os Sousa Galvão experimentaram o sabor confortável do alívio e também o azedo da decepção. Dona Carolina continuara viva por fim. Entretanto, neste exato momento, a velha começava novamente a ter calafrios pelo corpo todo e a retorcer a face em sons estrangulados, inclinando-se outra vez em uma imagem grotesca.
Para a surpresa de todos, a velha começou a expelir pela boca pequenos insetos pretos – moscas – escuras, sujas, saindo em revoada por entre seus lábios, vindos da sua garganta azeda. Trataram logo de se espalhar por toda a sala de jantar, zunindo e fedendo absurdamente em um eterno incômodo aos Sousa Galvão. Digo, pois, que eram moscas amargas, cínicas, cheiravam a rancor. Como os anseios de uma velha.