terça-feira, 4 de setembro de 2012

Chiaroscuro


Então, a menina sentou no canto direito da cama e chorou, porque passaria a vida inteira tentando provar que era humana.
Não metal, mas carbono.

Ela sangraria se fosse preciso, mas ninguém enxergaria. Ela morreria se fosse preciso, mas todos achariam que ela havia sido incinerada como uma máquina enferrujada que perdeu seu uso.
Chorava porque seu coração era um livro de capa preta, que parecia ser um conto de morte, mas ao abri-lo sentia-se o aroma fresco - e triste - da primavera.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Caído


Quantos crimes eu cometi inventados por você?
Toda escuridão será calada, assim que o sangue fabricado nos seus tanques for limpo nas águas turvas de um rio qualquer. Haverá um dia em que os guardas do rei descobrirão o líquido vermelho no meio do imenso rio e eu serei como um anjo posto na estaca pagando pelos próprios delitos, e eu não saberei de nada dos meus próprios delitos, pois foi você quem os pintou. Os crimes que você quis pintar em mim e, por isso, me fez colorido. Da cor dos seus crimes. Muitos. Matiz.
Eu serei como aquele que foi expulso dos céus. Mas só porque foi assim que você me viu. Se houvesse me olhado com os olhos mais puros eu talvez ainda estivesse lá – intacto e casto – e não um semi–anjo, caído, por completo. Quando os seus olhos fecharam, eu calei e quando os seus braços mataram, foram nos meus que o sangue apareceu.
Eu sou só o espinho. Da flor mais estrangeira que você nunca conheceu.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Dias Vermelhos



Todas as coisas correndo como uma avião de caça.
O cenário inteiriço de uma paisagem nova, mas já gasta, voando com o vento tórrido sem perdão, movendo-se, louco, pelos ares certeiros e secos de distância do oceano.
O mundo correndo, o vento girando e não movendo mais moinhos.
A rapidez do tempo que faz os meus olhos queimarem e a minha pele cortar, é dela que eu falo. É ela que me traga, me ocasiona, me engatilha aos poucos pra quietude dos anos – que sendo poucos, pesam muito.
Eu talvez chegue aos vinte tendo vivido demais.
Eu talvez acabe escrevendo algumas dessas histórias extraordinárias que não tem história, onde nada acontece e o único clímax é a dúvida e o medo de um homem que olha à janela.
Eu talvez acabe escrevendo essas histórias onde tudo acontece mas nada faça o menor sentido.
Eu talvez não acredite que o amor seja uma mera utopia dos byronianos.
Eu talvez acredite que não acredito em quase nada em que se é possível acreditar.
A minha história talvez seja sempre uma utopia de dois - que quando alguém nasce dois em um só, o fim é um amargo despedaçar: em três, rasgos.  Uma cabeça quebra-cabeças que não consegue resolver suas poucas meias dúzias de peças. Assim, eu engulo as minhas próprias peças, os meus pedaços, estes que eu arranquei com o vigor e a excitação dos dias mais –
dos dias mais! -
mais vermelhos e irracionais.
Esses dias instintivos. Esses dias produtos de um querer único e muito e simples. Que o simples é o maior penar, o simples é esculpido e trabalhoso. E eu sou como um pequeno desbravador da gigante mina das pedras simples. Na terra do tempo vadio, do tempo vazio,
                                        eu sou um estrangeiro.

sábado, 9 de junho de 2012

Os Amantes



muito pouco tempo, muito pouco
vento leste zona norte cai no sul
azul do céu virou cinza de tristeza
veja, que tá tudo errado e não sei pra onde você
vai, não fique assim, porque se depender de mim
o cinzeiro do céu vira um bando de sim
assim

as cinzas vão virar mar por onde trinta mil pássaros irão
em vão, passar, nos ignorando como os deuses
vezes e vezes limparei os meus olhos e
tortos, estes nada enxergarão
em vão mais uma vez e outras quarenta mil, em vão

lá onde o chão não tem cor e o vento sopra negro
lá onde o vento vira tempo que vira cedo que vira cento,
cento e oitenta e três canções compostas pelo ruído
do gemido dos amantes escondidos atrás do próprio tempo

de noite, sob o céu dos pássaros cinza-tristeza
certeza, olhando pro céu eu vou te mandar um pedaço
v a s t o
de céu azul anil.

Prólogo



A frieza das flores de inverno congela as folhas do outono e também o perfume no meu travesseiro. Eu nem sei mais o que é sol. Mas também não há problema algum. Essa não é uma história de reclamações.
Eu pensei que fosse deixar pra lá, mas então eu inicio umas dessas histórias cuja trilha sonora é Jeff Buckley. De antemão: 'essa é uma história cheia de burrice e de estupidez' - porque eu próprio a escrevi e cada burrice contida nela foi planejada e desejada por mim. É como não cortar as unhas e com elas arranhar a própria face, as costas e as pernas. É a minha estupidez que me completa.
Eu desejava um conto simples, prático. Mas estive preso demais aos quadros de Magritte. Eu deveria ter observado coisas mais simples, deveria não ter desejado nada nem ninguém, mas gastei tempo demais preso em hipérboles bem construídas, metáforas indecifráveis e versos decassílabos - que eu enxerguei, no rosto e na voz das outras pessoas.
Foram dezenas de estrofes para um ombro e cinco parágrafos para as costas de uma mão. O melhor texto para a cor de um cabelo e doze contos sobre o tom de uma voz - mas há quem diga, os autores não tem coração. A maioria deles o vendeu na primeira linha do seu primeiro conto ou poema: está lá o coração, claro como o papel e rabiscado pela tinta da língua que cria.
Me desculpem, mas eu não estou arrependido por escrever esta história. Eu apenas sinto muito pelo meu silêncio.
Me desculpem, mas eu não acho que seja um erro.
A minha dúvida é a minha certeza. Vinte e sete formas de escolher uma vida e eu escolhi vinte e cinco por cento de cada uma, degluti e fiz dela a minha. Torta, esquisita, contida, ambígua, nostálgico-futurista, oscilante, cômica, aparvalhada, intransponível, sutil, vermelha, como bochechas coradas. A minha certeza é a minha queda. E eu caio em um imenso chão de nuvens de algodão que acabarão por me sugar - sim, toda aquela doçura vai acabar me absorvendo de vez, até que eu seja transparente e eterno.
Transparente e eterno. Mas nada de misticismos. Essa não é uma história sobre fé.
Eu tento desvendar a minha própria cabeça. Onde está a minha cabeça? Talvez eu já esteja preso nas nuvens de algodão. Pelo rosto. Levemente sufocado. Mas vivo. Com vinte e cinco por cento de cada uma das vinte e sete maneiras que existem de se escolher uma vida.
Essa é uma história sobre independência e covardia. É comum, exceto pelo fato de que ela, como as nuvens, nunca acaba de vez.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

It

eu sou um
isto
e todos os istos
são istos muito mais úteis
do que eu

nem que eu escrevesse poesia concreta
da melhor qualidade
ou ensaiasse o meu melhor monólogo
elisabetano
ou ainda a mais elaborada música
com as minhas próprias mãos
eu ainda seria
isto

então haverá um dia
em que eu criarei um eu-robotizado
uma versão muito melhor
do isto que eu sou
de metal acrílico cerâmica cobre
programado pela química física robótica
para ser tudo aquilo que você quis

e este isto será um isto ainda melhor
do que o melhor isto do mundo
e muito melhor do que o isto
que hoje eu sou

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Teoria do Caos


Não adianta fazer planos, que qualquer dia se termina enxergando desenhos nos reflexos da janela outra vez. De nada servem os meses de tocar e não ter: quando você parar de tocar, terá. E de nada adianta fazer sentido, pois qualquer dia desses você vai estar distraído, porém são e consciente de que "não mais", "nem muito", "tudo é pouco" e então para você realmente vai ser, mas em algum lugar da outra pessoa a teoria do caos vai causar o contrário e sentido vai ser mesmo coisa de soldado.

Você engolirá borboletas no escuro ao som de guitarras distorcidas e não saberá se prefere o amargo das borboletas mortas ou o doce das tardes de terça-feira cozinhadas com calda de chocolate. Você construirá todos os relicários para o passado e, como estátua ganhando vida, ele vai voltar lhe inundando tanto quanto o presente. E então as coisas vão girar. Ao seu redor, um furacão, você-olho. Como todos os moinhos, rodas, bolas de gude e de meia, as imagens de um passado-relíquia vão casar com as imagens do presente-tesouro e rodar ao seu redor até que você pense que está em um sonho ou talvez em um história impressionista de Virginia Woolf. Você será Orlando, será homem e amará princesas russas, será mulher e amará cavalheiros medievais, será homem e amará rapazes de saia, será mulher e ainda amará o rosto jovem das princesas de Moscou. Você acordará em uma manhã, em Constantinopla, e ao invés de nobre rapaz inglês, estará transformado em uma mulher madura que odeia saias e vestidos.
Qualquer dia desses, você irá querer contar uma história como a do Pequeno Príncipe e não mais enxergará chapéus onde seriam elefantes sendo engolidos por cobras. Você enxergará os elefantes e os carneiros, mas desejará não ser responsável por isso. Você terá medo dos baobás e eu lhe contarei histórias para dormir. Eu escreverei histórias no céu, com as estrelas tortas de seis ou sete pontas, e eu não saberei se estarei criando uma ode ao passado ou uma prece ao futuro.
Meu bem, meus-bens, amantíssimos: estou enlouquecendo. A felicidade tem gosto de lágrima. Esse é um bilhete-pedido para que os físico-químico-biólogo-matemático-estudiosos consigam desencadear o que seria, quem sabe, deus queira, quiçá, talvez, um segundo Big Bang.
E cada milímetro da minha pele será grande, suficientemente grande.

domingo, 4 de março de 2012

Tangível-Visível-Palpável


Quando muitas horas giram em torno de uma garrafa, uma ciranda sem mágoas sem hora para acabar.
Quando é possível ser estupidamente feliz por dois ou três segundos em uma rua deserta e coberta de névoa às quatro da manhã porque se tem os cabelos macios.
Quando o seu impossível é compatível com o impossível do seu impossível e as flores do vestido exalam o catalisador de uma contente asfixia (eu me lembro do que escrevi, eu me lembro do que vi e era algo que saia do tecido do vestido e estava me dopando...)
Eu sei de coisas que eu sempre quis saber.
Eu ouvi coisas que eu sempre quis ouvir.
(seda, pele, pétala, morango, linho, fita de cetim, cabelos brilhantes)
Porque houve um tempo em que o bom tempo era longe. Houve um tempo em que era direito se importar com a desordem. Houve um tempo em que o impossível era impossível.
Passou.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Heart-Shaped Box


Eu estou deixando as águas escorrerem por baixo das pontes de vidro, estou deixando o leite derramado chorar sobre si mesmo e os Mutantes tocarem Top Top no fone de ouvido, estou cortando os ímpetos do seu instinto para que você abrace de vez os braços de porto no Braço de Mar.
Talvez um dia ou outro coloque os dedos no teclado outra vez e rirei sozinha dos seus sons e recordarei a noite de caos. E neste dia outras mãos surpreenderão meu dorso por trás das portas e meus ouvidos, que também serão outros, escutarão o som de uma voz menos clara. Quando esse tempo chegar, não importarão as gordas de saia, nem as ruivas charmosas ou as mestiças esguias, nem as garotas de cabaré, muito menos as belas sob a luz dos postes porque todas elas (todas, todas) e você serão apenas uma marca, uma pequena cicatriz sob o meu calcanhar direito. Encontrei Renée no meio da multidão (e ela realmente é absurdamente bonita) outra vez e ela me disse coisas, ela foi coisas, em instantes - ela não é como as suas meninas.
Sonhei que você corria de mim em escadas gigantes em meio a prostitutas de cabelo colorido e eu tive tanta certeza daquilo tudo que creio que ainda estou lá, passando pelos degraus cor de chumbo; mas quem corre agora sou eu, corro do cheiro de podre, do cheiro de cinza, dos degraus intermináveis, do seu cabelo (sim, eu fujo também do aroma do seu cabelo), da insanidade das mulheres fumando nas esquinas exalando também a minha loucura, fugindo das suas mãos no meu dorso...
Mas não se importe, já lhe vejo outros dorsos na mão e outros ombros muito mais doces, muito mais ilusórios do que os meus. E todas as mentiras poderão ser recontadas, e todas as músicas poderão ser reescutadas, e todos os santos não irão se importar, e todos os ócios, e todos os lábios.
Já não espero a gota d’água - muitas delas já assisti - e nessa espera - que chega ao fim - eu transbordei por todos os copos, vasilhames e garrafas, por todos os olhos, ouvidos e umbigos, eu transbordei em gotas d’água: estou pedindo o meu corpo de volta e também minha alegria, estou deixando o sangue correr, restaurando a voz que já quase não restava, acalmando a veia que tanto saltava, derramando a última gota que tanto pingava, é o desfecho da festa, por favor. (*)
Não é a toa que amanhã é quarta-feira de cinzas.