quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Cuidado Ao Abraçar Poetas


Era assim: se alguém queimava o almoço na cozinha, era o primeiro a pegar a parte preta: não cria merecer o melhor.  Levantava todas as vezes para dar lugar também aos mais novos, pois nem sentar merecia. Como um porto conveniente para barcos solitários, nunca fechado, os braços sempre abertos, quase escancarados. Levaram-lhe, ao longo da vida, duas ou dez notas de cem entre abraços – distraído, um romântico não enxerga nada além do momento. Nú, único: o momento. Um poeta, quando abraçado, ganha dez graus em miopia de ilusão.
Foi assim: doou tanto sangue que acabou por ficar sem. Certa vez, deu pra se alimentar do benmaldito amor. Foi maldito. Foi o braço direito mais direito do bendito e acabou por perder o dito cujo (o braço). Foram-se os dedos, ficaram os anéis. Transformou estes em brincos, que logo lhe foram roubados também, entre um beijo e um estalido. Mais um agosto e não lhe sobrava nem o corpo. Mais um setembro e foi-se a alma.
Doou-se tanto, sobrou-lhe nada.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

verso sem verso


eu - que não versejo - te verso este verso no verso
(do cabelo)
te escrevo como a flor que renasce no jardim
(do tempo)
pra dizer que gosto de tuas retas juntas às minhas tortas
(de morango)
num verso de crença espero que creias com fé
(na descrença)
nos meus olhos de tantos gracejos sem graça
(de graça)
que vendi só pra ti no teu brechó mais barato
(de luxo)
pra só um comprador poder me comprar de você
(tu mesmo)

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Epopeia




ia te dizer, te escrevi
parece-me que escrevo, mas dizem por aí que vivo
um poema de Leminski pichado na parte de dentro do meu jeans
tatuagens cerebrais das coisas que não fiz


ia dizer-te não, disse pra mim
sou um escritor sem café ou cigarro
paisagem mais cega destes campos amarelados
um hino surdo dos românicos românticos
dos esquecidos guardei tudo como se fosse meu

ia cantar, enrouqueci
é tanto silêncio pra tanto a dizer
que sufoquei o tanto que enlouqueci

ia xingar, quebrei meus dedos
li poesia demais pra odiar-lhe
pra refrear, quisera ter lido menos
quisera ter vivido mais

ia revidar, abandonei
como um lutador sem adversário
perdi-me no caminho entre três poemas e dois romances
dois versos mataram-me
outra rima e enterraram-me
epopeia esta que tu não choraste 

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Bio-logia


CANIBALISMO


A Primeira Mulher a olhou como quem olha um belo prato de lasanha com fritas. As luzes do clube a observavam e piscavam como um míope sem óculos.  A Segunda Mulher lambeu os lábios vorazes e arrebitou os quadris. Ela cruzou a Primeira Mulher em direção ao banheiro e esta a seguiu. Engoliram-se entre as portas do lavatório.

COMPETIÇÃO

Os Homens a olharam com furor. Deveria ser a vigésima da noite de um. O amigo estava pela décima quinta. Ambos posicionaram os dedos no cós da calça jeans indicando o órgão coberto. A Mulher observou seus cintos. Couro sim, couro sim. Sapatos limpos sim, sapatos limpos sim. Cabelo penteado sim, cabelo penteado não. Vodka, uísque. A Mulher seguiu à esquerda. Beijaram-se durante três martinis e cinco mixagens ruins.

COMENSALISMO

A Mulher chorava. O Primeiro Homem a havia deixado há apenas trinta e cinco minutos sem fazer-se entender. Lenços cobriam a cama solitária. O telefone toca, é o Segundo Homem. Ela atende e sorri, limpando as últimas lágrimas do dia.

PROTOCOOPERAÇÃO

Decidiram em um domingo modorrento: era o fim. O ciúme os matara como amantes, mas a amizade era sólida, única. O carinho, imenso. Abraçaram-se. Eram eternos.

MUTUALISMO

O Homem decidiu em um domingo caótico: era o fim. A sensação de estar preso, para ele, era fatal. Guardou suas coisas, sumindo com as malas e os papéis de carta. Ele respirou, aliviado. A Mulher respirava por aparelhos.

PREDATISMO

O Homem olhou-a entrar no beco em busca de cigarros. Observou seus quadris curvilíneos, seu rosto jovem e macio. A cor dos lábios d’A Garota era como cocaína para o seu cérebro. Seu coração palpitava e seu órgão também. Seguiu-a, admirou-a. Atacou-a sob a luz do bar abandonado.

PARASITISMO

Era uma mulher simplista. Ele, um sugador. Movia céus se pudesse acalmá-lo, enquanto perambulava frenético pelas ruas da cidade. Ela limpava-lhe os pés após as caminhadas descalço, enquanto ele dormia bêbado de vinho. O Homem consumia. Ela doava. Errôneos, amavam-se.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Entrada de Emergência


Cinco horas da manhã no relógio digital.
Se ao menos ele apagasse, a sua cintilante luz vermelha não mais interromperia meu sono. Ou apenas minha tentativa falível de dormir. Cinco horas da manhã e os letreiros de saída de emergência já sublinham minha testa de riscos sonolentos. Quem é que precisa de saídas quando nem se permitem entradas? Quem é que possui emergência quando não se possui circunstância? 
Considero criar minha própria situação-momento, que liquefaça o relógio taciturno, piscando abruptamente o tempo todo a cada badalada do meu cérebro. Meu cérebro.
Meu cérebro.
Digo isso como quem diz "meu coração".
Meu coração que clama por silêncio visual, ainda que quando minhas pálpebras se fechem tudo o que eu veja seja o piscar do relógio, gravado em minha retina, e também cores. "Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores". Cores do poeta mineiro que para sempre permanecerá sentado em um banquinho de Copacabana, para qual eu digo: mais vasto é o meu coração.
Mais vasto é meu coração, poeta. Mais vasto que Copacabana. E mais vasto que a luz vermelha deste relógio digital, que não se apagará jamais enquanto meus olhos ainda estiverem abertos - e vastos.

(escrito em 19 de julho de 2013)

quarta-feira, 16 de abril de 2014

há dias em que estou tão pequena que não consigo usar maiúsculas


há dias em que estou tão pequena que não consigo usar maiúsculas

há dias que acordo assim, mínima. há dias que você me desama tanto que acabo te desamando também. a ingratidão e a tristeza são duas coisas atrofiadoras, os músculos não se estendem para escrever grande, escrever maiúsculo. há um dia em que percebemos que comemos o bolo eterno do isolamento e do desagrado. os meus quadris tortos e pontudos, a minha pele suja e arroxeada, meu cabelo espalhado e grosso me devora, como quem um dia já foi devorado por lábios e mãos doces, hoje amargos como o podre. sou macabéica. o cérebro pensa em [delete] [delete] [delete] [delete] [delete] [delete] [delete], mas deletar alguém ou alguma coisa é aprisiona-lo para sempre em suas fossas sépticas interiores. é povoar seu interior de moscas, vermes e lodo, que um dia te consumirão e acordarás assim:

minúscula

quarta-feira, 12 de março de 2014

blackbirds

há poesias em outros céus que eu divido com os pássaros
há vento assonante de rima debaixo deste teto
tem tamanho certo pra esta camisa que eu visto
da mesma cor que a terceira cor desperta no canto mais direito deste olho esquerdo

há um conto em cada canto deste canto
há um chão pra cada parte que eu toco
tem gosto certo do tom mais-que-vermelho
da matiz do branco mais transparente do seu teto
da escuridão mais clara do translúcido noturno

há a estrela mais alta do alto do fundo do meu poço
há o brilho mais opaco da constelação ainda próxima
tem as gotas do chão que caem no céu de vasta vertigem
e os lábios dos pés que beijam o chão de nuvens rosadas

há o caos mais silencioso de braços de vento
e as mãos mais leves da pena mais pesada do pássaro mais revolto
há as janelas abertas para a parede de nós
e as portas fechadas para a garoa de dentro

e há sim

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

C'est

à tes yeux, je suis rien
pour toi, je suis pâle
un vin pas cher
que tu peux acheter quand                                                                    tu veux

                                                      je sais que

                                                                           je ne peux pas t’acheter quand je veux
                                                                           comme un très cher champagne
                                                                           pour moi, tu es lumineux
                                                                           à mês yeux, tu es un monde