segunda-feira, 28 de abril de 2014

Bio-logia


CANIBALISMO


A Primeira Mulher a olhou como quem olha um belo prato de lasanha com fritas. As luzes do clube a observavam e piscavam como um míope sem óculos.  A Segunda Mulher lambeu os lábios vorazes e arrebitou os quadris. Ela cruzou a Primeira Mulher em direção ao banheiro e esta a seguiu. Engoliram-se entre as portas do lavatório.

COMPETIÇÃO

Os Homens a olharam com furor. Deveria ser a vigésima da noite de um. O amigo estava pela décima quinta. Ambos posicionaram os dedos no cós da calça jeans indicando o órgão coberto. A Mulher observou seus cintos. Couro sim, couro sim. Sapatos limpos sim, sapatos limpos sim. Cabelo penteado sim, cabelo penteado não. Vodka, uísque. A Mulher seguiu à esquerda. Beijaram-se durante três martinis e cinco mixagens ruins.

COMENSALISMO

A Mulher chorava. O Primeiro Homem a havia deixado há apenas trinta e cinco minutos sem fazer-se entender. Lenços cobriam a cama solitária. O telefone toca, é o Segundo Homem. Ela atende e sorri, limpando as últimas lágrimas do dia.

PROTOCOOPERAÇÃO

Decidiram em um domingo modorrento: era o fim. O ciúme os matara como amantes, mas a amizade era sólida, única. O carinho, imenso. Abraçaram-se. Eram eternos.

MUTUALISMO

O Homem decidiu em um domingo caótico: era o fim. A sensação de estar preso, para ele, era fatal. Guardou suas coisas, sumindo com as malas e os papéis de carta. Ele respirou, aliviado. A Mulher respirava por aparelhos.

PREDATISMO

O Homem olhou-a entrar no beco em busca de cigarros. Observou seus quadris curvilíneos, seu rosto jovem e macio. A cor dos lábios d’A Garota era como cocaína para o seu cérebro. Seu coração palpitava e seu órgão também. Seguiu-a, admirou-a. Atacou-a sob a luz do bar abandonado.

PARASITISMO

Era uma mulher simplista. Ele, um sugador. Movia céus se pudesse acalmá-lo, enquanto perambulava frenético pelas ruas da cidade. Ela limpava-lhe os pés após as caminhadas descalço, enquanto ele dormia bêbado de vinho. O Homem consumia. Ela doava. Errôneos, amavam-se.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Entrada de Emergência


Cinco horas da manhã no relógio digital.
Se ao menos ele apagasse, a sua cintilante luz vermelha não mais interromperia meu sono. Ou apenas minha tentativa falível de dormir. Cinco horas da manhã e os letreiros de saída de emergência já sublinham minha testa de riscos sonolentos. Quem é que precisa de saídas quando nem se permitem entradas? Quem é que possui emergência quando não se possui circunstância? 
Considero criar minha própria situação-momento, que liquefaça o relógio taciturno, piscando abruptamente o tempo todo a cada badalada do meu cérebro. Meu cérebro.
Meu cérebro.
Digo isso como quem diz "meu coração".
Meu coração que clama por silêncio visual, ainda que quando minhas pálpebras se fechem tudo o que eu veja seja o piscar do relógio, gravado em minha retina, e também cores. "Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores". Cores do poeta mineiro que para sempre permanecerá sentado em um banquinho de Copacabana, para qual eu digo: mais vasto é o meu coração.
Mais vasto é meu coração, poeta. Mais vasto que Copacabana. E mais vasto que a luz vermelha deste relógio digital, que não se apagará jamais enquanto meus olhos ainda estiverem abertos - e vastos.

(escrito em 19 de julho de 2013)

quarta-feira, 16 de abril de 2014

há dias em que estou tão pequena que não consigo usar maiúsculas


há dias em que estou tão pequena que não consigo usar maiúsculas

há dias que acordo assim, mínima. há dias que você me desama tanto que acabo te desamando também. a ingratidão e a tristeza são duas coisas atrofiadoras, os músculos não se estendem para escrever grande, escrever maiúsculo. há um dia em que percebemos que comemos o bolo eterno do isolamento e do desagrado. os meus quadris tortos e pontudos, a minha pele suja e arroxeada, meu cabelo espalhado e grosso me devora, como quem um dia já foi devorado por lábios e mãos doces, hoje amargos como o podre. sou macabéica. o cérebro pensa em [delete] [delete] [delete] [delete] [delete] [delete] [delete], mas deletar alguém ou alguma coisa é aprisiona-lo para sempre em suas fossas sépticas interiores. é povoar seu interior de moscas, vermes e lodo, que um dia te consumirão e acordarás assim:

minúscula