segunda-feira, 9 de maio de 2011

Moscas


"De repente Dona Carolina deixou cair o garfo e soltou um grunhido. Todos se precipitaram para ela, abandonando seus lugares à mesa: a filha, o genro, os netos:
- Que foi, mamãe?
- Dona Carolina, a senhora está sentindo alguma coisa?
- Fala conosco, vovó?
A velha porém só fazia arranhar a garganta com sons estrangulados, a boca aberta, os olhos revirados para cima.”

(Espinha de Peixe – Fernando Sabino)


A imagem grotesca da velha com a face retorcida em esgar trouxe a todos os arrepios do medo. Da morte, da surpresa, do desconhecido, das coisas horrendas? Seria isso, de fato, caso tratássemos aqui de pessoas com certo padrão moral. Todo o clã dos Sousa Galvão reunido para o jantar da sexta-feira santa, entupindo as entranhas com o maravilhoso (“delícia de bacalhau!”) prato preparado pela matriarca. Aparentemente, uma típica família burguesa dos bairros de classe média do Rio de Janeiro. Dessas em que todos se reúnem aos domingos, a avó é uma viúva rancorosa e os pais estão sempre atarefados demais atrás de dinheiro para notar a ociosa vida dos filhos. Mas, como já disse outrora, a moral era apenas aparente. O verdadeiro medo que permeou de frêmitos a espinha de toda a descendência de Dona Carolina estava atado a um pulsante fio de satisfação. E esse fio estava atado a outro, o da desconfiança.
Pois bem, eis um fato: todos ali odiavam a velha com toda a dedicação. Era amarga, cínica e fazia questão de espalhar a todos o seu rancor mais íntimo. Ralhava com os netos a todo o momento, pressionava exasperadamente os filhos e aos genros vivia a atormentar com farpas e humilhações. O primeiro sentimento que assolou a todos – o medo – foi o de que alguém houvesse posto veneno na comida de Dona Carolina e, então, que todos se tornassem suspeitos do assassinato. O fio de satisfação que pulsou em todos, no entanto, é óbvio. Somente a vaga sensação de que ela e toda a sua animosidade pudessem vir a terminar logo ali enchia a todos com uma sensação repleta de otimismo (“Poderia sim ser o fim da amargura desta velha que abate a família por todos esses anos”, pensou um dos netos). E o último fio, o da desconfiança, surgiu ao passo que, cada um sabendo que não havia planejado a morte da velha, começou a desconfiar um do outro, imaginando quem finalmente havia tido coragem para pôr um fim a ela.
Foi então que Dona Carolina, entre tosses e acessos agonizantes de soluço, inclinou-se sobre o próprio corpo com certa agressividade e finalmente expeliu o motivo daquele caos de poucos minutos: uma pequena (e nem por isso menos incômoda) espinha de peixe. Ela continuou em sua posição fatigada por algum tempo. Tempo este em que os Sousa Galvão experimentaram o sabor confortável do alívio e também o azedo da decepção. Dona Carolina continuara viva por fim. Entretanto, neste exato momento, a velha começava novamente a ter calafrios pelo corpo todo e a retorcer a face em sons estrangulados, inclinando-se outra vez em uma imagem grotesca.
Para a surpresa de todos, a velha começou a expelir pela boca pequenos insetos pretos – moscas – escuras, sujas, saindo em revoada por entre seus lábios, vindos da sua garganta azeda. Trataram logo de se espalhar por toda a sala de jantar, zunindo e fedendo absurdamente em um eterno incômodo aos Sousa Galvão. Digo, pois, que eram moscas amargas, cínicas, cheiravam a rancor. Como os anseios de uma velha.

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