quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Creature of the Night


Um monstrengo capengo e farto, débil e corrompido. Consternado da própria aparência, envergonhado das carnes porcamente costuradas por uma mão destreinada. Era isso o que ele era.
Um decrépito senhor de muita idade era belo, ele – a face bruta e corroída de Lúcifer. Com os lábios trêmulos escondia-se, parvo, por entre as árvores para que não estragasse a beleza pura da luz com o seu reflexo grotesco.
Cansava-se da mata, da neblina e do silêncio. A criatura torta desejava lançar-se à besta-fera do mundo, com seus olhos maníacos e sua força descomunal. A bússola em seu bolso livrava-o das multidões, soturno e sorrateiro. Anônimo. Com o reprimido desejo de contato humano e o receio de ser repelido, ele observava a aldeia como um curioso observando uma colméia. As casas de aspecto simples e modesto eram um contraste gritante à sua aparência. A sua figura sombria se encaixaria mais apropriadamente ao pano de fundo de construções góticas e castelos medievais marcados pelo musgo e pelo tempo.
Ele aguardou por meses um sinal de que as abelhas humanas pudessem não odiá-lo ou sentir-lhe nojo. Mas eles eram todos graciosos e encantadores: o garoto do carrinho de rolimã, a garota dos cabelos dourados, o homem do chapéu-coco e, acima de todos, a mulher do cesto de frutas, com suas bochechas coradas e cintura contida. A face horrenda da criatura iluminava-se em um sorriso grotesco ao observá-la. Ele tinha medo, mas acima de tudo, anseio. Decidido a vê-la de perto (talvez tocá-la, talvez talvez), aguardou que anoitecesse a escuridão mais fria. Deixou a mata em direção à pequena casa de madeira onde a moça deitava-se sozinha todos os dias.
O monstrengo estendeu suas mãos brutas para a maçaneta. Os seus cotovelos rotos empurraram a porta. Os seus pés nocivos adentraram o piso gelado. A moça do cesto de frutas virou-se ao ouvir o rangido da dobradiça. E por um momento – em que ela e a criatura se encararam – ele observou-a como um mortal que admirasse um arcanjo. Ele observou-a olhá-lo com seus olhos aterrorizados, liquidando e ao mesmo tempo expondo toda a sua monstruosidade. Olhando-o como se ele pecasse por achar-lhe bela, por ser grotesco, por respirar, como se fosse um morcego, um sub-humano. A sua retina o amaldiçoou pela eternidade enquanto seus lábios rosados abriam-se prontos para gritar e avisar à aldeia e ao mundo que havia uma anomalia em sua sala.
Ela deixou o cesto cair dos seus braços em direção ao chão. O primeiro pêssego amarelado rolou em direção aos pés da figura grosseira e a criatura o apanhou com os dedos torpes. Ao pô-lo na boca, aguardou o sabor doce. No entanto, se lembrou: suas papilas gustativas de sub-humano não serviam para nada. Lembrou-se também que não adiantaria tocá-la, pois as suas mãos ásperas não o deixariam sentir a maciez das maças do rosto e, no mínimo, a moça-do-cesto-de-frutos acabaria enlouquecida de pavor e fincaria as suas unhas compridas no ombro do monstrengo até que ele se machucasse e vertesse o seu sangue sujo. E ele não queria contaminá-la com seu sangue sujo. Caiu em si. Com o soar dos gritos estridentes da moça, a figura horripilante agarrou a bússola em seu bolso – um lembrete. Ele virou-se para a porta, correndo. Em direção norte, segundo a bússola. Norte, sempre norte.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Sonetos


Esperei as palavras que não vieram sob um céu nebuloso de madrugada. Esperei escondendo-me atrás de uma xícara branca de café doce, com escuras pálpebras sonolentas embaixo dos meus olhos catalisadores. Eu tive medo da acidez da minha própria língua e da rigidez dos meus ossos. Eu temi as suas feições dramáticas extinguindo tudo o que eu era com estes olhos inquietos. Eu – o verme com funções de gueixa, o seu caso perdido – adormeci às seis da manhã para fugir do calor. Adormeci à espera de uma intervenção divina em forma de bilhete, respondendo que coisa era essa que parecia uma epifania, mas que não tinha nome, não tinha cor, não tinha cheiro, só alguns pensamentos desalinhados aqui e ali.
As coisas estavam mesmo muito doces, você não acha? O meu teto estava muito firme, não é mesmo? Eu era igual a todas as outras pessoas, sim? Eu não era? Você lembra como eu costumava abrir a boca o tempo todo e pôr as mãos com os punhos fechados sobre os meus lábios, ansiando por um santo de porcelana?
Essas coisas doces deixaram nos meus pés algumas saudades, algumas vergonhas, uma fita de vídeo de um filme em preto-branco-rosa sobre aves de pescoços longos, moças encantadoras e volúpia. Bilhete com resposta para aquela pergunta (“que sentir é esse? sem nome, sem cor, só reflexos”) não veio nenhum.
As coisas sujas e as belas são as mesmas – elas apenas se escondem - e vieram até mim, nessa hora estranha de um tempo incerto. Eu apenas não sei os seus nomes. Coisas belas e sujas tem nomes? Ou a beleza (suja) só existe porque vive uma vida secreta e anônima em que ninguém sabe a sua verdadeira face e, portanto, quando aparece, é isso: você não sabe o que é aquilo (tão lindo e incompreensível) e espera um lembrete divino com explicações?
Entretanto, o bilhete não vem. Porque a minha janela é pequena demais para o seu Deus entrar.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Esquina


Corro agora na mesma rua que outrora eu me encolhi. Você também consegue ouvir as pessoas sussurrando pelas nossas costas nesse caminho mal iluminado as coisas que nós não queremos ouvir? Você consegue ignorar as vozes que cochicham no nosso encalço as coisas que estamos cansados de saber? Eu tenho uma paixão tola por caminhar em lugares vazios, mas estes estão todos ocupados com gente que não sabe silenciar (e eu tenho medo).
O cheiro de vinho na taça dos outros (que bebem nos cantos da rua porque, afinal, o amanhã não importa) me faz salivar e de alguma forma me clareia os olhos para os seus rostos bonitos e para o meu próprio corpo cansado, erguido do chão, jogado no espaço, regado em suor.
Tenho aprendido a me orgulhar, a ceder espaço, a cantar baixinho no escuro do quarto com todo o resto da rua a dormir. Porém agora ela não dorme e me persegue, fria e insólita. As esquinas do meu roteiro cotidiano sussurram: “cante o que não dá pra falar, cante o que não dá pra gritar...”. Então eu corro - da ansiedade do próximo mês, dos cochichos sombrios, do medo e também do alívio, da rua, da rua.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Sala de Estar


O açúcar que faz as formigas se espalharem sobre a toalha da mesa. A voz grave que eu não sei propagar sobre o grande espaço. A poeira erguida sob os pés caminhando na madeira. Essas coisas todas dos cantos do mundo. A tristeza sua que eu não sei curar. A felicidade minha que só sei alentar e que seja!, pois o resto é resto e por isso, é tudo. Os meus hábitos de não dar finalidade às coisas, de não saber detalhar, de não saber planejar misturados aos ruídos da sala de estar. Eis o retrato de uma tarde. As combinações de um futuro próximo em uma conversa ao telefone: “eu não tenho dias livres, eu não tenho tempo, eu tenho saudades, eu tenho um sabor salgado...”.
Procuro tempo e acho gasto. Tenho erros para corrigir. Eu tenho palavras para decorar. E espero que parem de roubar as minhas letras, esperaria sentada em um amontoado de folhas secas se o outono não estivesse distante, assim como esperaria com minhas pernas molhadas e minhas roupas encharcadas em um tempo de chuva.
Eu roubei paz com minhas frases e não sei devolver. Machuquei minha própria garganta na tentativa de restaurá-la, tentando gritar (não sei fazer isso direito), tentando explicar. As cordas vocais tentaram dizer chega, mas eu as fiz sangrar.
E mais um som se mistura aos sons da sala de estar porque algum vizinho de bom gosto escuta uma bela música de algum compositor boêmio de alguma cidade litorânea do país desta que vos escreve, em alto e intenso volume, regando-me os ouvidos e essa coisa que chamam de alma, essa coisa que chamam de humor, com essa coisa que chamo de paz. Esta sala de estar iluminada me lembra outra sala – essa outra escura, quente e alta – na qual um dia fui convidada a entrar. Não havia música, só duas vozes. Não havia amor nenhum, só um carinho imenso, uma coisa meio “ah, se você fosse (segue-se uma pequena lista de quatro itens de características específicas) assim e se eu não amasse outrem, nós poderíamos...”.
Nós não poderíamos nada naquele tempo. E eu não posso nada agora, sentada em minha sala de estar na minha última meia hora livre do dia, deleitando-me nessa canção suave, nessa poeira de recordação que a janela deixa entrar. Eu não posso nada porque também sou poeira e também sou canção e também sou a própria sala de estar e a sua entrega e a sua essência e o seu minguar.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Ímpar-Par


Há um par de olhos pedintes pousando nos meus e implorando por aceitação tanto quanto os meus, há um par de olhos satisfeitos descansando nos meus e desejando conforto tanto quanto os meus.
Vou te contar um segredo: já amei estes olhos. Por um tempo. Os adorei em silêncio, em parcial sigilo, em suave desespero. Compus odes, escrevi em longos tecidos, esqueci de mim. Eu esqueci por um segundo – este segundo, o dos olhos pedintes – de que não sentia mais aquilo porque tudo voltou num redemoinho e desapareceu da mesma forma que veio. Só percebo agora, sentada nessa cadeira de madeira (na garganta, um gosto de manga), buscando na mente um ou dois nanossegundos em que isso foi concreto. Aquele microssegundo em que eu ainda te amava e, logo depois, não amava mais outra vez. A terceira vez.
Eu me calo para poder escrever sobre os silêncios. Eu transpiro para recuperar a minha liberdade decaída (mas não - eu não tenho sede). Faço todas essas coisas para continuar meus passos e para nunca cair nesta de “olhos pedintes” de novo e somente poder dar certo sem mais dores de cabeça, sem anseio, sem nada. Para que ninguém – nem mesmo eu, muito menos você – se perturbe.
Adquiri essa mania de erguer os dedos em um sinal de assentimento e uma sobrancelha erguida em sarcasmo para evitar maiores irritações com quem quer que seja. Uma forma estranha de autodefesa. É uma coisa esquisita essa, de sentir as coisas. A gente sempre acaba matando tudo aquilo que é belo.