quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Sussurro


Estive em um redemoinho de farpas. No centro de uma praça pública ardendo em brasas, com mil pares de olhos vermelhos vidrados em minha direção.
Podia enxergar as línguas fervilhantes, ácidas, espirrando todos os meus fantasmas ao meu redor. Eu sabia que todos ali possuíam suas próprias mentiras deslavadas para jogar aos meus pés, todos fingindo saber os detalhes daquilo que nunca aconteceu.
O ácido saído das suas bocas espirrava em minha pele, corroendo meus membros e minha face com as palavras ferrenhas, queimando-me em brasa - morrendo aos poucos. Nem mesmo a chuva fina apagava as faíscas de fogo saltando de suas bocas cheias de odiosidade. Tudo o que a leve garoa produzia eram as marcas das pegadas feitas pelos pés da multidão feroz – pés pequenos, pés grandes, descalços ou calçados em mais fino material.
Eu não tinha medo, mas poderia rir de tanto nervoso, pois me inquietava o grito preso na garganta. Sabia que era o fim: verdades escondidas nunca vencem as mentiras que os outros decidem comprar pra si mesmos.
Esperei os segundos passarem lentamente, arrastando-se contra a dor do desgaste. No entanto, em meio à agonia das acusações, dos olhos vermelhos e do ácido fervilhante, ouvi um sussurro.
Sutil, quase imperceptível em meio à massa feroz e violenta. Não sei quem o disse e recordo-me o quão tolas eram as suas palavras. Lembro-me da sensação esquisitamente boa que me invadiu, como se nada daquilo fosse real – um simples pesadelo, em que todos eram o meu próprio inferno particular. E num segundo estúpido, por um sussurro tolo, de uma voz anônima - a única no lugar com palavras delicadas e doces - eu havia acordado e estava no céu.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Ruína


Eu perdi.
Perdi a solidez, estive confusa e abandonei um pouco de vida a cada esquina cruzada enquanto tu andavas com os passos firmes que eu nunca soube
dar.
Dá-me tristeza o não dizer, o não produzir, a ausência concreta que deixei vigorar e todas as outras falhas que tu nunca deixaste
acontecer.
Aconteceu: e eu sempre soube. Suspeitei e escondi-me na ignorância, agindo como alguém que não fosse digno de nota. Havia uma fagulha, uma faísca, uma centelha se agitando copiosamente em
desconfiança.
Desconfiei desde o início, mas o próprio início principiou
tarde.
Tarde da noite, tarde de horas, cedo de anos, escasso em palavras, duro de sorrisos, comum em
quietude.
Aquietou-se então a suspeita preocupante do sexto sentido quando observei a confirmação estampada em teu rosto. Assisti a lenta queda dos pedestais com as mãos atadas e a doçura presa nos
olhos.
Olhei para onde não devia. Sussurrei minúsculos mistérios a quem não soube conservá-los. Fui incerta e insignificante enquanto tu expelias poesia, graça, doçura e saber. Exalava todas as coisas que eu quase fui, quase sou, talvez
serei.
Serei um dia ao menos a metade do que tu és?

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Cacos


Tenho um gosto pelo tempo perdido
Pelo amargo das bocas
E o cristalino dos olhos
Os rascunhos mal feitos
Dos carros passando

Tenho um gosto pelo ambíguo
Um olhar em cima do muro
Para a indiferença ao meu redor
Como um conforto,
Sem repúdio

Aprecio as cores opacas
Nas pontas dos pés ou
Nas solas dos dedos
Assim como a dureza dos ossos
E a fraqueza das carnes

Um gosto pelo peculiar azul
Uns cabelos negros, retos e curtos
As sombras que passam
As luzes que ficam
As dores que marcam

Conheço o fracasso fadado
O doce sabor de um pódio
De palavras ditas no silêncio perturbador
De bocas não beijadas e
De abraços não dados

As migalhas do seu pão
Os nós nos dedos e a garganta inflamada
E os quadros abstratos da sua mão
E a expressão comprimida, no peito entalada:
eu as tenho

Guardei todas as flores murchas
Como recompensas em uma caixa
Ao redor dos cacos dos meus porta-retratos quebrados
E toda a sorte de coisas que nunca te dei
E todo o arrependimento que se pode amargar:
eu guardei.

sábado, 11 de setembro de 2010

Bexigas Murchas


Despedindo-se da infância perdida vestida com camiseta vermelha na tarde chuvosa, guardo a memória dos plásticos rasgados de fim de festa, dos doces sobrados e das garrafas com pouca bebida. Confundem minha concentração com suas piadas tortas os meus amigos queridos, trazem-me sorrisos que não me pertencem, que escondem meus desejos incertos não-revelados.
Reparei nas suas unhas, nas mãos, na curva dos ombros pelo reflexo da poça líquida esvaída no chão por algum frágil embriagado. Eram curtos e frágeis, mais fracos que minhas próprias forças de menina. Os amigos riam de suas próprias conversas – eu, alheia a tudo, absorta em sua imagem retorcida refletida no chão. Observara tudo e todas estas coisas tornaram-se ridículas, feias: os traços, os espaços, as axilas e as pálpebras caídas. Criou-se uma imagem grosseira.
Os cabelos quebradiços, a cor desbotada, a pele cicatrizada, as flores murchas, a roupa amassada, o doce enjoativo, o rosto suado, a grama poluída, a água suja, a voz rouca, a mente vazia, o abraço desgostoso, os olhos cegos, as mãos ásperas, a música de mau gosto, as bexigas estouradas, as velas apagadas, o cheiro ruim.
A ansiedade reprimida fora transformada em desânimo e tristeza em menos de meio minuto, por um aviso curto - uma simples observação. Mas na sola do seu sapato (quase um segredo!) uma frase sincera riscada com tinta vermelha me fez rir: “o amor fede”.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Delicadeza Insone


A aurora esmiuçava a escuridão noturna com seus braços finos de dama reluzente, desvairando ao céu uma claridade esparsa. Raro bem-estar em meio de semana traziam o deleite da manhã clara e o desejo de anunciar ao mundo a simplicidade exultante que não a permitiram dormir.
Durante a noite, a menina encontrara em sua cabeça palavras doces para disfarçar suas feridas abertas e o sangue seco em suas mãos. O próprio ar tornou-se mais fresco entre os lençóis, os elementos tomaram posse das cores e pôde respirar com convicção. Danou-se a química, a álgebra, a física e as ciências exatas, contrárias a tudo o que lhe cabia em satisfação. Traduzia indiretas. Remoia pensamentos.
“Gaste comigo as pontas dos teus dedos, os murmúrios da saliva, a fraqueza das mãos e a sujeira dos pés.” – repetia a si mesma, solitária, como quem diz preces no escuro do quarto.
Remoia a certeza de que quando não mais o visse, sairia para procurá-lo nas ruas vagas. Revirou-se a noite inteira, acesa durante a madrugada afora na cama outrora reconfortante. A mãe perguntara-lhe se o incômodo eram os sons da TV.
Antes fosse esse o incômodo.
Antes bastasse desligar os sons da TV.
Antes fosse possível desligar o coração (a verdadeira pedra no sapato) e continuar respirando
.