quarta-feira, 2 de outubro de 2013

PIF6HX


Eu conheci o planeta PIF6HX. E lá fazia sol mesmo quando chuva. Nesse planeta o dia começava às vinte e três horas de uma terça feira escura e terminava às vinte e uma horas de uma sexta feira sonolenta. Durante esse tempo, ninguém jamais dormia. Posso lembrar de muitas pernas, que eram quase como as minhas; e línguas, que eram quase como uma; e quarenta anos de vida, vivos, presos em um cômodo de menos de dois metros quadrados. E você estava lá, como sempre; aos dezoito, como sempre; às seis da manhã, como sempre; no último espasmo, como sempre.
Em PIF6HX, as praias são chuvosas e caras com meia dúzia de poetas desempregados sempre a pedir por comida, o tempo é duro mas rápido como música pesada e a madrugada faz suar os colchões dos corpos dos amantes. É permitido sorrir pra câmeras depois das duas da manhã, tomar café com desconhecidos quase-conhecidos e gastar grandes quantias de dinheiro em itens para leitura e entretenimento.
Eu temo nunca voltar lá, com os prédios altos e o mini colchão e as ruas ventando. Voltamos para cá e me pergunto se ainda pensa em voltar e quantas dez mil vezes você já se apaixonou por outras sete pessoas PIF6HXenses. Quantas dez mil vezes pensou em me deixar de novo pela quadragésima vez. Quantas vinte mil vezes os minutos correram por dez horas com as pernas cansadas. Quantas vinte mil vezes sorrimos enquanto não havia espaço para inspirar. Quantas trinta mil vezes mais procurei felicidade por poucos reais em corredores compridos e cheios de gente. Quantas quarenta mil vezes dois kilos mais pesados. Quantas cinquenta mil vezes quase quarenta mil vezes absolutamente felizes, ainda que sempre quinhentas mil vezes mais distantes de PIF6HX.

domingo, 4 de agosto de 2013

Eu Te Amo

O problema é que você bate no meu coração do mesmo jeito que aquela música do Chico Buarque bateu da primeira vez que a ouvi. Eu a ouvi e pensei que nunca mais poderia ouvir outra música porque aquela era a mais bela e mais triste canção do mundo todo e nenhuma outra iria superá-la.
É assim que você me bate.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Sede


Uma canção pra te fazer ninar, com vinho ou de sopetão, uma canção pras cinco da manhã ainda ser cedo do dia anterior. Uma canção que mantenha de pé até a musculatura e o peito cansarem da chuva e pra se sentir ainda o cheiro da pele de ontem subindo dos cobertores e travesseiros.
"Aguaceiro, aguada, bátega, borrasca, carga d'água, chuvada, chuvarada, chuveiro, dilúvio, pancada, pancada de água, pé de água, pé-d'água, salseirada, salseiro, tempestade, temporal, tromba d'água."
E os olhos que eu passava o dia a vigiar já não sentem mais a dor de se entender o que se é. Assim ficar, sem sentir, absorvendo o aroma anterior até que a boca fique roxa de sufocamento e, assim, que ceda ao sim da sede.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Hipoc-ondria



'Minha sede de viver é uma ameaça atômica
E os meios que eu uso, baby, eu nem te conto
Meus "is" não tem ponto
Nunca peço desculpa
E escrevo "deus" com letra minúscula'
(O Lobo Mau da Ucrânia - Cazuza)


É tudo a hipocrisia da hipocrisia da hipocrisia.
Tudo o que sai da boca é hipocrisia. O bom dia sobre a mesa de café e boa noite debaixo do lençol. A pasta de escovar os dentes não limpa a hipocrisia da língua porque também ela é feita de hipocrisia. E o sabonete que higieniza no banho também esfrega hipocrisia.
A língua que sai da boca dos ingleses, franceses, japoneses e ainda dos turcos otomanos, o lamaçal lingüístico do latim com o anglo-saxão e ainda a primeira palavra balbuciada pelos bebês. Pois certo dia um bebê uno e sagrado, o mais franco, nasceu e logo disse seu primeiro vocábulo: hipocrisia; assim como deus teria dito: que haja luz, e houve luz.
Porque o cordão umbilical que primeiro o nutriu e o leite materno que primeiro o amamentou eram compostos de nada menos que hipocrisia, e a pobre mãe infelizmente hipócrita nada tinha para alimentar o seu bebê exceto sua própria hipocrisia, até que o bebê fizesse três meses e finalmente pudesse ganhar a sua saborosa e apetitosa papinha hipócrita. Ainda que não soubesse falar, ele milagrosa e amaldiçoadamente falou e botou o mundo nesse desvario hipócrita, esse lodo fingido, esse bebê-deus.
Então a partir dali tudo o que foi dito continha essa gororoba insossa que um dia alimentou um bebê-criador, tudo o que foi contado e – principalmente – escondido, possuía esse cheiro insosso de lágrima e cinismo que um dia fora regurgitado e transformado em palavras e ações, até que nos botaram no meio do lamaceiro também abarrotados de hipocrisia sonsa, hipocrisia que nem é inteira, que é meia, meio mal feita, mal falada e fedorenta, que por ser hipocrisia já é baixa e é mais hipócrita ainda por ser pela metade. Entretanto, a grande parábola é que para bons hipócritas como nós, meia hipocrisia basta.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Historieta




Eu tenho um minúsculo animalzinho contador de histórias, alimentado a leite seco de um seio morno, que cria sua sonomágicoplastia das cordas vocais de um velho e apodrecido corpo. Ouço o que diz, mas talvez não escute.
Ou, quem sabe, escuto sem ouvir.
Ás vezes, a grande parte, são histórias ainda nem vividas, ainda não concretizadas, entrelaçadas na sua mente esdrúxula como a confusão temporal da teoria das cordas, em que cada escolha se torna completamente uma nova vida, vivida sim, porém não conscientizada, uma duas três quatro cinco seiscentas mil vidas paralelas vividas trevividas e também, sempre, sempre, mortas. Sempre, assim que vividas, absolutamente esquecidas.
Meu contadorzinho é mais bicho que muita fera e mais gente que muito Deus. Pois tem história que não se conta – se passa por ela; tem história que não se ouve – se tem; tem história que não se vive – se mente; tem história que não existe, morre; tem história que mata, tem história que deixa viver. Mas toda história é história e quem conta é assassino e é também Messias, escritor e meretriz.
História é estória, estória é escória, escória é resquício, que é vitalício, é histeria, mimetismo, pluralismo e cicatriz.