terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Heart-Shaped Box


Eu estou deixando as águas escorrerem por baixo das pontes de vidro, estou deixando o leite derramado chorar sobre si mesmo e os Mutantes tocarem Top Top no fone de ouvido, estou cortando os ímpetos do seu instinto para que você abrace de vez os braços de porto no Braço de Mar.
Talvez um dia ou outro coloque os dedos no teclado outra vez e rirei sozinha dos seus sons e recordarei a noite de caos. E neste dia outras mãos surpreenderão meu dorso por trás das portas e meus ouvidos, que também serão outros, escutarão o som de uma voz menos clara. Quando esse tempo chegar, não importarão as gordas de saia, nem as ruivas charmosas ou as mestiças esguias, nem as garotas de cabaré, muito menos as belas sob a luz dos postes porque todas elas (todas, todas) e você serão apenas uma marca, uma pequena cicatriz sob o meu calcanhar direito. Encontrei Renée no meio da multidão (e ela realmente é absurdamente bonita) outra vez e ela me disse coisas, ela foi coisas, em instantes - ela não é como as suas meninas.
Sonhei que você corria de mim em escadas gigantes em meio a prostitutas de cabelo colorido e eu tive tanta certeza daquilo tudo que creio que ainda estou lá, passando pelos degraus cor de chumbo; mas quem corre agora sou eu, corro do cheiro de podre, do cheiro de cinza, dos degraus intermináveis, do seu cabelo (sim, eu fujo também do aroma do seu cabelo), da insanidade das mulheres fumando nas esquinas exalando também a minha loucura, fugindo das suas mãos no meu dorso...
Mas não se importe, já lhe vejo outros dorsos na mão e outros ombros muito mais doces, muito mais ilusórios do que os meus. E todas as mentiras poderão ser recontadas, e todas as músicas poderão ser reescutadas, e todos os santos não irão se importar, e todos os ócios, e todos os lábios.
Já não espero a gota d’água - muitas delas já assisti - e nessa espera - que chega ao fim - eu transbordei por todos os copos, vasilhames e garrafas, por todos os olhos, ouvidos e umbigos, eu transbordei em gotas d’água: estou pedindo o meu corpo de volta e também minha alegria, estou deixando o sangue correr, restaurando a voz que já quase não restava, acalmando a veia que tanto saltava, derramando a última gota que tanto pingava, é o desfecho da festa, por favor. (*)
Não é a toa que amanhã é quarta-feira de cinzas.

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