quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O Compositor de Telas


O garoto esquivava-se pelos cantos no escuro parcial, escorando-se em paredes de cores pálidas padrão. Inclinava sua coluna ampla tortamente para evitar ser visto, curvo como em uma falha (e muito mais bela) imitação do corcunda de Notre-Dame, um rato sorrateiro de aparência convidativa. O menino atravessava o corredor deserto, distante apenas alguns metros de qualquer presença humana, em direção à última porta, o fim da linha. O recinto, as paredes, seus próprios ouvidos e os dois hemisférios de seu cérebro pulsante ecoavam o som de um hino conhecido por qualquer um que houvesse nascido no país. Sentia-se hipócrita cantando-o e este era um dos motivos por ter dado meia-volta ao pôr os pés no primeiro centímetro do pátio escolar. Todas aquelas pessoas com a vida inteira pela frente vestindo uniformes das mesmas cores, com a mesma postura, louvando um símbolo em fila indiana faziam-no relembrar as imagens dos exércitos nacionalistas europeus dos livros de história. Então fugira, esquivara-se, dera as costas ao cinismo e escondera-se no corredor mal-iluminado.
O falso corcunda de olhos escuros escondia uma chave roubada em seu bolso esquerdo – lembrou-se por um instante, sem deixar de sorrir, da forma como conseguira o objeto – e tirou-a dali. Possuía dezesseis anos na existência, quatro promessas não cumpridas, dois roubos de pequeno porte para carregar a culpa e nenhum gosto por uma carreira tradicional, daquelas que nos são empurradas goela abaixo quando se freqüenta qualquer estabelecimento educativo clássico. Não desejava uma mesa presidencial em um escritório cinza, papéis burocráticos cheios de assinaturas, calculadoras febris por resultados fixos, conversas prontas de falsa simpatia ou aquela asfixia de se estar em um ambiente todo apático e costumeiro. Por isso roubara a chave no armário da sala treze, por isso perseguia a última porta do corredor com o passo sorrateiro, ignorando a presença de todos os seus conhecidos há alguns metros de distância, não podendo vê-lo enquanto entoavam o hino das hipocrisias.
Ele aproximou-se furtivo e girou a chave na fechadura. A porta do depósito se abriu.
Os olhos dele se enriqueceram em um brilho cinza ao contemplar o ambiente. Havia ali inúmeras prateleiras repletas com potes de tintas de todas as cores e composições, telas, cavaletes, pincéis de todos os tamanhos, murais e lápis. Os cantos superiores das paredes, no entanto, abrigavam teias de aranha de aparente desamparo e descaso. Há seis meses a professora que desfrutava daquele depósito fora demitida e a que a substituíra nem de perto o utilizava com alguma freqüência - o que era, de fato, um desperdício imperdoável e irremediável. Mas agora o garoto sorrateiro, não mais inclinado como um corcunda para esconder sua face, estava ali e o lugar – por tantos meses em um semi-abandono – parecia adquirir um novo ar de graça com a presença de um apreciador à sua altura.
Embrenhou-se pelos espaços entre as prateleiras de madeira empoeiradas, em busca dos exatos instrumentos que precisava: um par de pincéis de tamanhos opostos, três recipientes de tinta (um preto, um cinza e um amarelo) e a tela de tamanho médio. Sentou-se no canto vago mais próximo e a atmosfera do espaço, outrora opaca e desgostosa, iluminou-se como um ser vivo que acaba de digerir um alimento de delicioso sabor. O dom que brotava de cada dedo das mãos do garoto, atravessando a barreira dos pincéis e, por fim, alcançando seu devido lugar na tela parecia perfeito ali, como o filho pródigo retornando ao seu lugar de origem.
O menino retomava na memória a imagem que buscava, da garota desconhecida que avistara há poucas horas ao caminhar na direção da escola. Ele andava com a mochila apoiada em um dos ombros pela calçada um tanto vazia, e em meio a um descuido de seu olhar (até então direcionado para os próprios pés) observou os carros parados nos trinta segundos em que os faróis permaneciam vermelhos. Sua atenção foi instantaneamente concentrada na direção de uma garota na janela de um carro pequeno. Com cabelos pretos que recortavam seu rosto como em uma moldura cuidadosa, ela possuía um ar juvenil e absorto, com o dedo apoiado distraidamente em seus lábios. Os olhos eram negros e amendoados – uma escuridão só -, tão expressivos quanto palavras, divagando silenciosamente pelas luzes fluorescentes da cidade enquanto uma claridade amarelada aflorava-lhe pelas costas. Seu rosto contrastava essa luminosidade de um letreiro atrás do carro, dando-lhe um fulgor momentâneo. O vidro respingado de gotas de chuva dava-lhe uma aparência triste, quase desejosa. Foram trinta segundos em que a observara e este foi o tempo suficiente para que a registrasse na memória, cravada, desenhada permanentemente com objeto cortante: seu ar indagador, sua juventude e a firmeza de traços. O farol se abriu e ela se fora para sempre. Agora os mesmos contornos eram traçados por seus punhos, dedos e pincéis em uma tela branca. Pouco rica de detalhes, mas suficientemente corajosa em linhas modernas, simples, básicas e nem por isso menos honrosas ao rosto da menina, o quadro se compôs em poucas horas e restaurou-lhe a paz de espírito – certas coisas deveriam ser contadas tanto quanto deveriam ser pintadas. Para ele, era como se pedissem, quase implorassem para serem registradas com alguma fidelidade. Tais figuras o buscavam em tardes chuvosas e carros parados, em multidões frenéticas e no silêncio de um depósito e sempre as aceitava como quem aceita um abraço de alguém querido. Aceitava as imagens desses seres receosos e traduzia-as com as tintas, o punho e uma dose de sinceridade, todos aqueles personagens gritando por ele em seu silêncio rotineiro. E o garoto, em seu dom, gravava-os em tela como a garota entediada espiando as luzes de dentro do carro, implorando por traços, por cores, por um registro fidedigno - clamando por atenção.

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