quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Coração de Cinzeiro


Ela era um camaleão e ninguém sabia.
Ninguém sabia exatamente porque ela conseguia se disfarçar com incrível precisão em meio a todos e qualquer um. Em meio ao nada, silenciava-se. Em meio ao falatório e à algazarra, ela conseguia atrair todas as atenções para si com graça e humor. Para os carentes de atenção, dava-lhes os ouvidos. Aos solitários e esquisitos, era também uma figura calada e exótica. Aos extravagantes, um poço de exageros.
Luci vestia máscaras e não percebia. Portanto, corrijo-me: as máscaras é que se vestiam dela. Observava inconscientemente o modo com que determinadas pessoas se portavam em determinados lugares e adquiria inexplicavelmente as mesmas formas, apelos e poses. Era como se tomasse o lugar dos outros sem que percebessem e fazia isso como ninguém.
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You are the birth and you are waste
You are the one who took my place

Abria os olhos todas as manhãs como um ser cru e desprovido de ambições. Em seguida, ia adquirindo o estado de espírito do ar da manhã: tempestuoso ou quente, nublado ou agradável. Desviava-se com as pernas bambas das poças de lama, mas havia algo nas pessoas ao seu redor que era mesmo muito sujo, fazendo com que seu corpo ansiasse pela imundice e pelo lodo. Então, ela tropeçava e se sentia realmente muito suja, quase obscena, como todos os outros. Luci tinha um coração de cinzeiro, onde todos poderiam depositar as suas cinzas e restos sem que se incomodasse. Ela nunca havia percebido que não possuía identidade até que um dia descobriu que havia um tipo muito particular de beleza que a perturbava. E não se tratavam de metáforas: falo mesmo sobre beleza palpável, de pessoas que possuem qualquer coisa de belo na face. Pessoas muito pálidas e de cabelos muito claros a perturbavam. Descobrira isso andando na rua ao avistar um desses seres que lhe pareciam constantemente iluminados por algum tipo de fulgor particular. Eles o perturbavam de uma forma alucinada. Como se roubassem dela a própria existência quando na verdade era ela quem estava acostumada a roubar um tanto da essência dos outros com seus hábitos-camaleão. Para Luci, toda aquela palidez e claridade em uma mesma pessoa ao longo de todos os fios de cabelo e da pele pareciam-lhe exclamar: “Eu te desafio a pensar. Eu te desafio a continuar perturbando a sua própria cabeça com o que você sente quando me vê. Eu te desafio a me contar." Era algo muito estranho que nem mesmo ela saberia explicar.
E não saberia mesmo explicar porque nunca havia sentido nada que não pertencesse a outra pessoa. Mas aquilo – esse esquisito sentimento de que aquelas pessoas um tanto brilhantes a desafiavam – era a primeira coisa verídica e autêntica que presenciara em toda a sua vida sobre si mesma. Era uma perturbação legítima acerca de pessoas claras demais, que pareciam puras, castas e sempre muito belas. Estupendamente únicas. Não poderia roubar das suas essências para construir a sua própria, ou seja, faziam-na tornar-se nada (nada de camaleão, nada de máscaras, nada de nada). Apenas um amontoado de inquietações.

Protect me from what I want
Protect me, protect me

Então, Luci desejou (pelo mundo, por Deus e pelas próprias pessoas) com unhas, dentes e toda a sua inveja que ela pudesse ser também assim: límpida, brilhante dos cabelos à pele, perturbadoramente bela. Legitimamente ela mesma e a qualquer custo.

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