quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Fragmentos de um Remetente Desconhecido


Todas as quartas-feiras, o homenzinho de roupas azuis e amarelas tem de passar em frente à minha casa e despejar encomendas, cartas e telegramas. Há algumas semanas passei a receber uns pacotes encapados em papel azul nas tardes de quarta-feira, pontualmente ás quinze horas. Aguardo em meu portão a chegada do carteiro. Espero como um cão aguardando um afago e lentamente me desperto enquanto observo os ponteiros do relógio chegarem à hora ansiada.
Na primeira semana, estranhei a tal “encomenda”. Não havia nome de remetente, apenas o destinatário. Meu nome reluzia em tinta preta em meio a um vazio papel branco. Abri-o cuidadosamente.
A primeira coisa que me enviou foi uma sombra. Algo negro saíra de dentro do pacote, uma pequena amostra de você. Essa sombra materializou uma imagem sua em meu cérebro por alguns poucos segundos: lá estava, entre a multidão frenética em um mês de maio calorento, ressaltando aos meus olhos devido a sua semelhança com alguém que eu venerava já há muito tempo e também devido a sua camiseta de cores contrastantes. Depois de segundos, a imagem desaparecera em brumas brancas. Senti-me um tanto perdida após esse vago acontecimento, pois perguntas brotavam em mim tal qual uma dúvida insistente sem sentido algum. E mais extraordinário ainda foi conseguir me sentir solitária quando aquela sombra repleta de vida decidiu esvanecer-se.
Na segunda semana não esperei, mas recebi um pacote azul idêntico da mesma forma. Trazia reflexões tuas a respeito de si mesmo. Todas as falhas, todas as coisas agradáveis e as impressões íntimas rabiscadas em uma letra corrida, com tinta preta borrada em um ou dois cantos, revelando certo descuido e muita pressa. Teve o cuidado de me enviar suas opiniões mais célebres, as mais absurdas e as mais baixas a respeito do seu próprio ser fazendo-me rir, soluçar, enraivecer e até mesmo avermelhar-se com as bobas anotações.
Na terceira semana, recebi teu aroma. A ansiedade em poder senti-lo de forma mais intensa causou-me um fino corte nos dedos quando fui rasgar o embrulho azul. O aroma era exatamente aquele que se é capaz de sentir entre os ombros e a nuca, guardado cuidadosamente em um vidro pequeno e sinuoso. Ora, desta vez havia sido um tanto covardia.
Nas semanas seguintes, todas as quartas-feiras ás quinze horas eu parava em meu portão, aguardando. Recebi sua voz um tanto febril em um gravador antigo. Recebi partes da tua pele morna um tanto machucada. Recebi uma miúda faísca dos seus olhos. Recebi algumas lágrimas suas, alguns lamentos. E também alguns risos estridentes, umas gargalhadas insanas. E tem sido assim durante todas essas semanas, desde aquele maio calorento: fragmentos de você chegam até mim pela caixa de correio.
Mandou-me tudo, todo o seu mundo, mas o coração – ah, o coração – esse você não quis mandar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário