quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Sem Mais


O nunca me persegue. Quebrei os ponteiros dos relógios, as ampulhetas empoeiradas e todos os possíveis marcadores de tempo. Escondi o sol com um manto negro em minhas janelas e, mesmo assim, abusei das portas abertas para que me trouxessem ventos arejados soprando sobre minha pele. Fujo do tempo, busco uma nova estação, uma temporada que murche as flores desabrochadas nas últimas semanas – que restem somente as suas pétalas e seu aroma ameno acalentando minha placidez interna.
Sinto uma harmonia insossa que já se faz presente como a ponta de uma imensa montanha de esquecimento. Um fio condutor de sossego na alma. Sei que o redemoinho, firme e farto, pode voltar a qualquer segundo em que meus olhos despercebidos voltarem a deixar-se turvos. Não acho que me importe se tal estonteamento retornar, já que agora, com deleitoso prazer, adquiri certo ar de firmeza. Uma solidez que não me cabe e resolveu dar as caras por esse ambiente cinza e opaco, uma espécie de rocha que resolveu dar-me as costas e deixar-se substituir por uma gargalhada extenuante aqui e acolá. Um sopro de alívio.
Pode contar-me sobre todos os teus detalhes e pormenores - agora quero, posso, devo, desejo e anseio ouvir. Relate-me. Degusta-me. Deleite-se. Descreva-me. A indiferença sutil tomou posse e mata lentamente esse ser vil e desprezível: o nunca, que insistiu em caçar-me ao longo de anos, adentrando por portas escancaradas. Admiravelmente dessa vez consegui um feito único e glorioso: ignorei todas as possibilidades perdidas que o nunca havia me extorquido. Levantei meu queixo e meu pescoço pendido, assistindo-o corroer-se. Excepcionalmente dessa vez quem extorquira fora eu, ao deixar o leite derramado escorrer sem piedade alguma. E não há mais prantos sobre o líquido esvaído.

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