Estamos no campo. É outono e um carro de som anuncia pelas ruas da cidade a chegada do cinema itinerante. O burburinho logo se espalha por toda a região – que nunca havia recebido a visita do cinema, e muito menos possuía um fixo – deixando a população em estado de ansiedade. Seria na noite seguinte, era sábado.
A menina ouvira a notícia enquanto sentava na porta de casa, os pés estirados na calçada, como fazia todos os fins de tarde para escutar os sons vindos da rua e sentir os aromas das sacolas que as senhoras traziam da feira antes da noite cair – as frutas, vez ou outra um cheiro de pastéis e sempre o frescor das verduras. Do alto dos seus jovens oito anos, ela não podia enxergar. Por isso, apegava-se a tudo que seus outros quatro sentidos pudessem lhe proporcionar, almejava os detalhes, todos os pormenores que seus ouvidos, mãos, nariz e boca pudessem lhe dar.
Assim que ouviu o anúncio no carro de som, foi chamar o irmão mais velho. Gostaria que ele a levasse para o cinema na noite seguinte. Seria domingo e havia uma melancolia nas noites de domingo – melancolia esta que não haveria amanhã se ele o levasse ao cinema. Ele considerou por um momento, enquanto ela lhe pedia, o fato de que sua irmã era cega. Hesitou. Cedeu. Havia algo de especial em sua irmã querer ir ao cinema e mesmo assim, seria uma nova experiência para ele mesmo. Nunca havia ido ao cinema.
A noite seguinte chegou. Ambos foram, sozinhos, o irmão guiando a menina com seus braços dados, caminhando pela rua principal, que levava a um grande terreno de terra batida aonde o cinema itinerante havia se instalado. Chegando lá, havia fila, o que já era esperado. Os dois encaminharam-se para o final da linha enquanto aguardavam. A menina passou a observar com os sentidos outra vez, sentiu cheiro de pipoca, tateou sem querer uma placa (seria onde estaria escrito o nome do filme? Ou talvez o nome do cinema?), ouviu algum barulho distinto.
“O que é?”, perguntou ao irmão.
“O que é o quê?”, disse ele.
“Esse barulho, na nossa frente, não consigo... identificar.”
“Shhh! Fale baixinho! É um casal.”, sussurrou ele.
Os dois continuaram a aguardar na fila, enquanto a menina prestava atenção aos detalhes dos sons do casal na frente, imaginando como seriam seus rostos, como seriam suas roupas e o que estariam fazendo. Aguardaram por cerca de vinte minutos, até que puderam entrar e sentar-se na fileira do meio. O filme estava começando e a menina percebera porque sentiu o calor da luz da grande tela refletindo em seu rosto levemente. Ela pedira que seu irmão descrevesse aspectos visuais do filme, para que pudesse entender a história não só com o que escutava. Ele descrevia as cenas, passadas dentro de um grande sobrado, relatando os cômodos, um detalhe ou outro.
Até que houve uma cena na cozinha da casa, em que a personagem escutava uma música que a menina reconheceu ser um pouco antiga – década de setenta, talvez.
“Ela está dançando na cozinha”, disse o irmão. “Com uma caneca vermelha nas mãos.” A menina construiu a imagem em sua cabeça: a cozinha, a personagem – o irmão dizia que era feia, muito alta, com o nariz protuberante, por volta dos 30 anos – dançando aquela música antiga (a menina a havia escutado algumas vezes) e, no entanto, teve uma pequena pausa em seus pensamentos ao chegar na caneca. Vermelha. Mas a menina não sabia o que era vermelho, não sabia como eram as cores, estas não podiam ser captadas com o toque, olfato, paladar ou audição. As cores eram o seu mistério, o enigma do vermelho. E todo o tempo que se seguiu durante o filme, ela tentava imaginar como seria se ela visse cores, em tudo tentava botar cor, nos olhos, nos móveis, nas vozes – porque ela não sabia se as vozes também possuíam cor. E então ela passou a buscar cores em tudo, após o cinema, ao sentar na calçada nos fins de tarde, nos cheiros das sacolas trazidas da feira, nas roupas dos casais se beijando na fila do cinema, nos filmes, na cidade, nela mesma.